quarta-feira, dezembro 01, 2004

Em Nome do Espírito Santo

Dedicado à Memória de Albert Ayler [1936-1970]

Quando, numa manhã nebulosa de 25 de Novembro, descobriram o corpo no rio o mundo soube que não iria ouvir nunca mais aquela voz. Aquela voz tenebrosa, que anunciava a marcha dos santos, dos espíritos e dos fantasmas, dos mortos e dos vivos, era única e era fogo e um dia apagou-se afogada.

Deves ter para dizer coisas infinitas que esse olhar esconde, deves trazer milhentos pensamentos presos por fios, à espera do instante em que uma frase solte a água toda da barragem. Deves arrastar atrás de cada pensamento uma réstia de sabor, uma lembrança de passado, uma imagem de um banho na água fria de um rio longínquo. Nada sei em frente aos teus olhos e por isso sorrio só por te ter aqui. Abraça-me.

Dobramos a esquina e seguimos à loja de acessórios de moda, onde a Carla queria procurar uns brincos verdes que fizessem bem ao cachecol verde, dobramos a esquina da Rua Garrett animada pelo ambiente de Natal e a fúria das compras e continuamos até ao fundo da Rua Anchieta. Do lado de fora da loja revejo-a. O cabelo é o mesmo, a cintura magra e as pernas altas e um sorriso duvidoso, uma expressão interior imperturbável, a cara tão bonita como da última vez.

Reencontrei-te, disse para mim, enquanto engolia o sorriso que acabava de nascer. Olhaste também, eu vi. Deixaste de aparecer no pequeno café que servia almoços na Póvoa de Santo Adrião e pensei que fosse o fim dos nossos encontros secretos, que disfarçávamos de casuais, fazendo de desconhecidos que comiam a hora de almoço em hambúrgueres e bifanas sempre iguais que só algum excesso de maionese tornava comestível. No entanto sempre falamos. Nesses dias todos, apesar do silêncio, dissemos coisas. O olhar cruzava-se e havia conversa, olá, olá, também estás por aqui, pois é, estás tão bonita hoje, não digas essas coisas, a sério, o hambúrguer hoje está bom, não mudes a conversa, vou beber o café, eu também, adeus até amanha, adeus até amanhã.

Como num filme ou numa história banal, encontrei-te e tudo voltou a ser como era dantes. Talvez num dia desta semana, ao final da tarde, no regresso do trabalho, ganhe coragem e leve um papelinho com o endereço de um site na Internet onde escondi um poema para ti, para que saibas que tens um sorriso que combina tão bem com o cabelo preto desalinhado e as cuequinhas laranja (desculpa, não resisti), vou dizer coisas, se tiver coragem, ou talvez nunca te diga nada e nunca leias isto e nunca descubras que és para mim uma espécie de sol.

Talvez tudo possa acontecer. Há 34 anos morreu afogado Albert Ayler, um homem que transformava o saxofone no depósito da sua alma por onde rezava a todos os santos do céu e que certa vez numa entrevista, quando perguntado sobre o que fazia quando não estava a tocar respondeu: “gosto de me sentar e olhar para a minha mulher”. Enquanto deliro ao som das pedras de gelo no copo meio vazio e das notas vagabundas de um concerto francês, copio-lhe a intenção e miro-te, desculpa, não te sintas observada, sei que não és minha nem és mulher, és apenas a miúda gira da loja de acessórios de moda, mas miro-te, deixa-me olhar só um pouco mais, perco-me na lembrança da imagem difusa do teu rosto, mas sei que é assim que tudo vale a pena.

NC