quinta-feira, outubro 20, 2005

Fim


[Fotografia de Filomena Parreira]

No fundo, um escritor é um bocado um ladrão, um gatuno de sentimentos, de emoções, de rostos, de citações. Um livro é sempre feito de pequenos roubos com a vantagem de não sermos condenados.
(Mandamento de deus)



Obrigado. Até um dia.

Nuno Catarino
Paulo Ferreira

quarta-feira, setembro 07, 2005

So Long


[Ilustração de Felisbela Fonseca]

Era uma noite semelhante às outras, talvez mais perfumada de luz e sentia-se um sabor a esperança no ar. Naquela noite quente de Lisboa ele sentou-se na terceira fila, como tinha prometido, mas ela não estava lá. A banda começou a tocar e pelo meio da noite cresceu um ritmo irresistível, uma música insinuante que trepava pelas pernas acima e que não deixava ninguém quieto, o ritmo seduzia e nós todos deixámo-nos levar, embalados. Tu também. Estavas ao meu lado e não te conhecia de lado nenhum, mas eras de certo modo uma substituta involuntária e daquelas primeiras vezes que te olhei via alguém que não eras tu. Trocámos sorrisos simpáticos, daqueles bem-educados que ficam sempre bem, reparei que eras bonita, reparei que eras bonita e sorrias e dançavas a música, vibravas com a música, ambos dançávamos quase quietos e nesse instante secreto partilhámos uma imensidão de coisas invisíveis através daquilo que os músicos noruegueses nos davam. A música forte que vinha do palco tratou de embriagar os sentidos e para o fim já não eras outra pessoa, tinhas recebido uma personalidade própria e foi a ti que fiquei com vontade de conhecer. Consciente que momentos destes estão dependentes de conjugações astrais altamente improváveis, tentei balbuciar qualquer coisa, na tentativa de ficar com um bocadinho de ti, levar-te esse fragmento no bolso até casa. Acho que consegui esboçar um trémulo “até ao próximo concerto”, respondeste num sorriso e saíste. Segui-te um pouco ao longe, vi-te entrar num carro e num pensamento disse a mim mesmo, mas alto para que conseguisses ouvir, “até um dia destes”. Fugiste para uma qualquer avenida cinzenta do Cacém, do Barreiro ou de Vila Franca de Xira, as pessoas cruzam-se e perdem-se, o tempo é o maior cínico, pensei. E depois num dia que ameaçava ser demasiado banal, sem saber bem como, reencontrei-te. Contei-te que já nos tínhamos cruzado num concerto mas não te lembravas. Combinámos um café ao fim da tarde e outras coisas depois, jardins verdes e esplanadas vazias, e trocamos telefones, músicas, livros, filmes, beijos. Sorrio de cada vez que vejo o teu rosto celeste, revejo a tua imagem vezes sem conta, provo uma vez mais o teu aroma açucarado, e quase sinto que te estou a tocar, estás aqui, quase aqui, demasiado aqui e não quero acreditar, não posso acreditar, não acredito, não acredito que estou numa cama branca de hospital a dois minutos da morte e que nunca mais vou voltar a deitar-me no sofá com a cabeça no teu colo a ouvir o piano solitário de Keith Jarrett a colorir uma madrugada.
NC

quarta-feira, agosto 10, 2005

Pensando En Ti


[Fotografia de Nuno Catarino]

E no meio daquela tarde insonsa de verão o telemóvel despertou-me um sorriso. Era uma mensagem tua, que estavas a ouvir uma música e que te lembraste de mim. Sorri, cantarolei a música baxinho, sorri. Sorri porque te lembraste de mim, sorri por me lembrar da música do Devendra, pensando en ti: comiendo peira en Santa Maria de la Feira, que placeria. Respondi-te e o bicho rectangular que se esconde no bolso das calças apitou umas quantas vezes, tantas quantas vi o saldo a decrescer. Quando dei por mim estávamos refastelados na música, embrulhados pelo sofá e, meios distraídos, pedaços da minha pele a cobrir a tua em festinhas demoradas. O teu copo está vazio, outra vez. Quando damos por nós estamos a perder roupa, que com este calor de quarenta graus está sempre a mais. Demoro-me nas curvas bonitas dessa pele enfeitada com tatuagens. Beijamo-nos e, antes de adormecemos abraçados, dizes "gosto de ti" e eu digo "gosto muito de ti" e sabemos que é a verdade, é a verdade toda, ainda que depois regresses à banalidade de outra pele e outro vinho e outra música, sempre que voltamos sabemos que é bom e gostamos de ser assim felizes de vez em quando.
NC

quinta-feira, julho 21, 2005

O trompete na noite


[Ilustração de Sofia Fonseca]

O rapaz do primeiro esquerdo dormia de manhã, acordava de tarde e vivia de noite. Chamavam-lhe assim porque era a única referência que os vizinhos tinham dele. Também tinha o cabelo esquisito, num penteado fora de moda, mas se alguém resolvesse tratá-lo por rapaz do cabelo esquisito havia sempre mais alguém com quem se pudesse confundir, por isso ficou sempre associado ao pequeno andar onde morava sozinho. O rapaz do primeiro esquerdo era único, embrulhado em mistério e segredos, e ninguém sabia o seu nome, desconfiavam mesmo que nem sequer tivesse algum documento legal. Associado àquela vida, apenas um registo numérico: a indicação do número de porta, número dez, e do andar, primeiro esquerdo. O prédio de Alfama onde o rapaz do primeiro esquerdo se refugiava era um cubículo apertado onde se amontoavam um sofá, alguns livros, meia dúzia de fotografias e muitos discos antigos. Os discos foram herdados de um avô, um velho poeta que, numa noite bêbada, teve morte trágica. O rapaz do primeiro esquerdo, fechado na sua casa, passava as horas a sentir toda a música do mundo, que para ele começava em 1938 e acabava em 1961. Naquela fabulosa colecção de discos estavam incluídos todos os negros americanos que fizeram a história da música do século vinte. O rapaz do primeiro esquerdo vivia sozinho e não conhecia ninguém. Um dia, deitado em leituras numa relva esquecida da cidade, conheceu uma rapariga. Ela tinha franja e meias às riscas, era baixinha e as roupas esquisitas escondiam a beleza que trazia. Ela não falava muito e quando perguntou as horas reparou que ele estava a ler o mesmo livro que ela trazia debaixo do braço: O Grande Gatsby, de Scott Fitzgerald. Ambos sentiam que aquela não era a época deles e ambos viajavam no tempo nas folhas dos livros antigos. Talvez nunca encontrassem o tempo e lugar ideais, mas as viagens valiam sempre a pena. A menina das meias às riscas prolongou o sorriso mais do que o habitual e o rapaz do primeiro esquerdo deixou-se afundar na água quente dos olhos interessados. Ela tinha de ir-se embora, ele deu-lhe um papel com uma morada: número dez, primeiro esquerdo, uma rua em Alfama. Os dias passaram, chegou o Verão, a cidade ficou vazia de gente, chegou o Inverno, as pessoas fecharam-se em casa. O rapaz do primeiro esquerdo vivia imerso nos livros que contavam histórias de amor impossíveis e tristes e desde há meses que só ouvia baladas, poucas de final feliz. Numa noite, o rapaz do primeiro esquerdo vestiu um fato preto, o único que tinha mas que estava impecavelmente limpo, e pôs o trompete a brilhar, que sabia tocar mas onde raramente mexia para não desafiar os mestres que amava. Nessa noite, triste de nuvens e sem estrelas, o rapaz do primeiro esquerdo vestiu o fato, saiu de casa com o trompete na mão e caminhou orgulhosamente sobre o largo do Rossio. A noite não estava fria, mas num instante a brisa transformou-se num arrepio que varreu as lâmpadas municipais. Em redor não passavam carros, o silêncio cobria a noite. O rapaz do primeiro esquerdo ergueu o trompete ao céu e soprou. I loves you, Porgy. I loves you Porgy, don't let him take me, don't let him handle me and drive me mad, If you can keep me I wants to stay here with you forever and I'd be glad. O rapaz do primeiro esquerdo sabia que aquele momento breve numa tarde de calor tinha sido o amor, igual àquele que tinha lido tantas vezes nos livros, daquele amor que levava à loucura, ao desespero e à morte. O rapaz do primeiro esquerdo sabia que a vida, ao contrário de alguns livros, não tem finais felizes. No fim da música subiu a colina até se esconder em casa. Era madrugada quando a campainha tocou.
NC

quinta-feira, julho 07, 2005

Modo Breve de Morrer


[Ilustração de Luísa Gonçalves]

Sente o suor que escorre de mim e diz-me boa noite, embora seja apenas tarde e este cubículo fechado tresande a maldade empresarial, acaba com o teu amor em part-time e vem ter comigo de vez, mata a ansiedade que chove em mim, pesada, deixa-me ser teu assim muitas vezes fechados em suor ou então só mais uma vez mas com o tempo todo, para que o mundo acabe bem. E molhado, como tu quando me sentes no teu ouvido a trincar esse breve momento de céu, deixa-me morrer, mas por amor de Deus, larga-me o sapato e deixa-me a camisa, que isto não são modos de receber clientes. E antes que a chuva acabe de vez lá fora vai-te embora que ele já deve estar à tua espera, e se fosse mentiroso como a primavera dizia-te que não me importava que fizesses o mesmo, só por imaginar sempre a tua pele ao dispor dos meus dentes afiados de calor. E nem que passasse mais meia hora conseguia perceber a frase que deixaste presa ao meu peito, triste, peludo e nu, pensativo pelo resto da semana até ao dia em que te vir sozinha às compras no centro comercial e te convença a levar o detergente em promoção para que acabemos mais uma vez deitados a beber os dias líquidos cheios de pressa para que a cerveja não fique morta. Como nós.

Vem. Responde-me de vez, não fujas à verdade vermelha que ainda não é tempo de cerejas. Diz-me só que afinal sabias tudo desde o princípio. Eu não me importo mesmo nada. Se a verdade é assim tão turva como poderemos nós alguma vez provar? Entra na cozinha marcada pelo óleo de fritar e olha-me, que me partes toda. Entra, mas não fiques calado como andas sempre, taciturno como sombra que sempre foste, apenas erguido quando obrigado. Fecha a janela que está frio, e chove, está frio, e chove, está frio, e chove, está frio. A televisão ligada é sinal que nunca aqui estiveste, sou só e eu sozinha perdida do mundo obrigada a ser vítima do mundo. Somos sempre vítimas quando queremos. Mas nunca me quiseste, pois não? Fecha a janela, que chove, é frio lá fora, chove. Nem a tarte de maçã que te quis oferecer e tu nem um sinal, nem uma fatia, nem só para provar, nem uma resposta. Por favor. Nem assim. Eu de joelhos, tu nada. Mostrengo de sombra que não és nada, uma tarte dada era só um modo triste de te dizer mais uma vez que me ajoelho para ti sempre que queiras e queria tanto que me quisesses, não queres saber. Já chega. Rouba-me e vai-te embora.
NC

segunda-feira, junho 27, 2005

Da Janela Mal Fechada


[Fotografia de Sandra Fernandes]

Quando conheci a Alice na discoteca grande, escura e apinhada de gente arranjada e bem vestida não imaginei vê-la agora assim. Ela era gira. De noite era mais gira e quando a vi de dia pensei que me tivesse enganado. Quando ela punha a pintura ficava mais bonita. Mas depois apareceu o puto, o Tó, e ela deixou de se pintar, deixámos de sair de casa tantas vezes, acho que deixámos mesmo de sair de casa, arranjámos esta casa aqui às Portas de Benfica que foi uma sorte, ainda agora vamos almoçar aos domingos pelo menos uma vez por mês a casa do tio que me ajudou, é verdade que não tem grande vizinhança mas de que nos serve isso, da janela vê-se o entulho das obras, não sei onde há tantas obras para haver tanto lixo, às vezes o pó entra-nos pela janela da cozinha que temos de fechar tudo e passamos assim dias sem ar de respirar, só ar de gente, ar já gasto, se o ar é gasto não sei mas sei que não é bom, não deve ser bom para o Tó, que ainda é pequeno, mas é rijo, já vai fazer dois anos para o mês que vem, gosto mesmo dele, nunca pensei que se pudesse gostar de um puto assim, da Alice é que parece que deixei de gostar, ela passa os dias por casa e não faz nada e não se interessa e não quer fazer nada, quando lhe digo olha no feira nova estão a pedir raparigas que eu vi no jornal lá no trabalho que o Berto me emprestou, ele que quer sair da oficina mas não arranja nada, compra sempre o jornal mas nunca encontra anúncios e quando encontra nunca o chamam, e a Alice não é mais a mesma, agora já não põe aquele baton que pôs daquela vez que a vi naquele bar da Buraca, estava ela com umas amigas e eu com uns amigos mas deixámo-los e ficámos só os dois. Acho que foi mesmo dessa vez que ficámos a conhecer-nos melhor, falámos a noite toda e ficámos sentados num muro lá na Buraca a ver as estrelas, lembro-me que havia nuvens, eram poucas, e foi bonito, mas agora ela já não me olha assim, só olha pela janela como se visse no entulho um rio, um mar feito de obras, de lixo, cimentos e pedras e tijolos em montes como peixes nesse mar grande para onde ela olha, ela deve vê-lo azul como está hoje o céu e eu falo-lhe mas ela pouco responde é por isso que quando chego do trabalho como depressa o jantar que ela fez e saio, vou ao café, bebo duas cervejas, às vezes três, ou quatro, e depois se me apetecer, e ao Carlos e ao Mário também, vamos os três a uma casa que fica na Bobadela, é longe mas vale a pena, e chego a casa tarde mas quando me lembro do olhar que a Alice já não tem é que penso nesta vida que não quero que seja a minha, a nossa vida era diferente e víamos o rio da janela e os peixes, os peixes mesmo a sério, saídos da água azul do rio no instante em que dão aqueles saltos como os atletas na televisão, sorriam para Alice a responder ao sorriso dela, dá-me um beijo e até amanhã.
NC

quarta-feira, junho 01, 2005

Adeus Estranho


[Fotografia de Margarida Mendes]

Como num pesadelo disfarçado de nuvem ou como naquela música dos Supertramp, nunca aparecias a tempo da sobremesa e tinhas que ir embora mais cedo que as gaivotas, deixavas no ar esse perfume de aventura e aquele último olhar que se pega e não nos quer largar por muitos anos que se possam viver. Fazias essas coisas todas, bonitas e selvagens, que é costume fazermos com as pessoas que nos fazem sorrir. E tu fazias, arrancavas sorrisos e deixavas gente apaixonada às dúzias, arrebatada e enganada, e seguias e seguias e subias e corrias. Por vezes não é a companhia ideal para nadar num rio cheio de diques principalmente quando está a chover de novo e eu a perder um amigo, outra vez, diz-me algo inédito e assombrado, diz-me algo inédito e sussurrado. Há uma porta que se abre, lentamente, a pedir pessoas para entrar, há uma janela que chama o vento, há sempre aragem a respirar pela casa toda, há esse inspirar-expirar que os sítios mortos não conseguem, há essas rodelas de limão que enfeitam os copos que começam as noites que acabam os dias. Podes dizer-me adeus de forma levezinha, assim como seja só até amanhã, até breve, até logo, até já? Mesmo que o amanhã, o breve, o logo, o já não voltem, mesmo que seja só para disfarçar as palavras e enganar os olhos, que marejados nunca ficam bem nas fotografias. As mãos fortes. Bebe mais um gole, come mais um salgadinho desses que nos dão e são de borla, como que não faz mal, e mais um gole, é mais uma imperial se faz favor. Sai da pastelaria com essa expressão incógnita de quem sabe o futuro com três semanas de avanço, compra três maços de tabaco, apaga as três últimas noites da tua memória selectiva e refugia-te numa ilha deserta do mundo a beber Jack Daniels e a ler os livros do Hemingway. Esquece os telhados solarengos do mediterrâneo pobre, os gatos, a água, o mar e o céu, que é sempre azul como nos filmes. Lá fora ainda há assobios e vidros e cânticos e vozes aos milhares em gritos profundos, como em 1994, mas sem o super João Pinto, nem o Rui Costa mágico, nem o Vítor Paneira, o melhor médio direito pré-Figo, o enorme Vítor Paneira dos cruzamentos perfeitos, sem essa espécie de heróis e ainda assim conseguimos, graças a deus e ao resto. Perdido no estádio sobrelotado de cinquenta mil almas faltavas tu, quando julgamos estar próximos da perfeição é que a sentimos fugir lá longe.
NC

terça-feira, maio 31, 2005

Jantar!

O blog Poetry Lands convida os seus leitores para um jantar no dia 11 de Junho, sábado, na Taverna "O Caldeiro"! A Alquimia Submersa também marcará presença, assim como os nossos leitores... Será uma noite de tertúlia e boa disposição. É favor confirmar a presença.



Rua Amoreiras-Rato 47 Lisboa
1250-022 LISBOA

Preço médio por pessoa 14€

quarta-feira, maio 11, 2005

A noite é proibida


[Ilustração de Felisbela Fonseca]

Deitados sobre a areia da praia numa madrugada, se bem que em certas alturas os dias não têm princípio nem fim nem nada, deitados sobre a areia da praia numa madrugada de Setembro, essa barriguinha dourada será o meu travesseiro. E eu fico assim quando abres esse sorriso de disneylândia. Chamas-te Sara, como a minha prima que já se casou e por quem tive uma paixão arrebatadora aos onze anos, numa semana de férias em que passou em minha casa, um daqueles amores que num dia nos fulmina e no dia seguinte não temos tempo porque temos de jogar à bola. Esse colo é o abrigo onde levas contigo os meus olhos de cão triste. Depois das bicicletas pulamos o muro impossível e corremos sem parar pelo meio dos eucaliptos em fintas invisíveis e slaloms imprevistos e a terra forrada a mato é o destino fatal quando o anjo do equilíbrio nos falhar. Enche os bolsos dos calções de nozes, traz o mapa do tesouro, não te esqueças nunca das nozes. Lá fora os caracóis insistem na vida, fogem da sombra e quando o sol mais matreiro os apanha arrebitam sem vergonha os cornos para nós. Arrastam-se lentamente pelas folhas verdes, sem horários nem obrigação de voltar para casa antes das quatro e meia para o lanche de marmelada. Lembras-te o que te disseram naquele dia magnífico de Fevereiro? E a humidade toda que as coxas entrelaçadas prometem? Traz-me à luz, tu que conheces a magia universal, contigo engravidei sonhos. Para sempre, para sempre num grito abafado. Da caixa de correio da Dona Arminda saiu uma lagartixa e um susto que a levou ao hospital, a senhora é fraca de coração mas juro que não fui eu e se tiver tempo antes dos desenhos animados prometo que rezo três avé-marias para a senhora voltar para as suas couves verdes onde mora uma família grande de caracóis envergonhados. Se me fosse permitido sonhar voava pela vida toda, escolhia nuvens fofas, descansava nas palmeiras e só descia para nadar. Fazem-me confusão os letreiros nos cafés e tascas de ruas mal frequentadas que, orgulhosos, anunciam no cheiro a fritos que “Há caracóis e pipis”, se ficassem pelos tremoços e azeitonas servia na mesma para acompanhar as cervejas amarelas onde mergulham para morrer mil bolhinhas; os bichos, molengões, poderiam continuar a crescer ao sol. E o brilho do pescoço das mulheres é mais intenso quando o perfume se insinua, a música aproxima as mãos e a noite ousa transformar-se em madrugada. É demasiado cedo para o arrependimento e demasiado tarde para o abandono, o néon fascinante ainda nos apaixona, é tempo de uma tragédia sentimental. Corre, foge. Paras o olhar no retrato emoldurado de um cidadão bigodudo de mil novecentos e quarenta e sete e é nesse instante frágil que volto a reencontrar-me na curiosidade desse olhar. Como se fosse possível pensar a perfeição. És mais bonita do que aquela outra das paragens dos autocarros. Ao fundo do esconderijo há uma caixa de música que nos embala. E há morangos.
NC

quarta-feira, abril 20, 2005

Fusilli Tricolore, Baby



[Ilustração de Sara Lucas]

Começa por pôr a água ao lume, não te esqueças do sal, do alho e de um fiozinho de azeite. Polvilha também com uns pozinhos de pimenta e noz moscada. Agora lava uma maçã verde e descasca-a, corta a maçã em cubinhos pequenos, corta o queijo e o fiambre em bocadinhos pequenos iguais. Entretanto não deixes a água ferver demais, assim que esteja no ponto põe a massa a cozer. No fim da cozedura, escorre a água, mistura os bocadinhos de maçã, queijo e fiambre e junta um pacote de natas. Leva ao lume dois minutos, enquanto mexes com a colher e salpica com algumas passas. Está pronto a servir, desliga o lume. Ficas bonita com o avental enrolado nessa cintura magrinha. Mas agora despe o avental enquanto acabo de pôr a mesa. Apesar de tudo prefiro ver-te o umbigo descoberto. Enquanto ponho a toalha, abre a garrafa de tinto alentejano. Bom apetite. As palavras misturam-se pelo meio das garfadas e dos goles de vinho que engolimos. Contas as coisas todas que te fazem sorrir e partilhamos excertos de vida em sorrisos e em dois segundos já não estamos à mesa, num instante fugimos e somos gatos a passear pelos beirais das casas antigas, saltamos com uma agilidade impossível, corremos os telhados todos do bairro esquecido e só paramos no telhado da casa mais alta, onde o reflexo da lua é mais quente. Dizes coisas a brincar e foges, eu corro atrás de ti e acabamos embrulhados, seguimos assim pela noite fora. Um pouco mais à frente, cansados, repousamos abrigados numa chaminé antiga, deixas cair a patinha sobre mim e já não me arranhas. Depois de te perderes a contar as estrelas mais brilhantes (mas só as mais brilhantes, as outras ficam para outra vez), voltas o olhar para mim e sabes o que se segue. Lembras-te que é tarde e tens de ir embora, eu também, amor. Deixa, eu arrumo a louça.
NC

quinta-feira, abril 07, 2005

Margarida dos cabelos negros

A noite é uma anedota que acaba de ser contada por cima dos copos de cerveja fresca de fim de tarde. Há uma brisa fria que obriga aos casacos e, depois de estendermos o olhar uma última vez sobre a cidade e o rio, dizem-nos que é hora de voltar a casa. É muito mais fácil quando conhecemos tudo, sabemos o caminho, temos um mapa, vemos os sinais e a estrada não é mentirosa, mas a viagem tem mais sabor quando cada cruzamento é uma incógnita e o destino não vem detalhadamente pré-definido num pacote promocional de uma agência de viagens com nome exótico. Hoje vi-te. Acho que eras tu, subias a rua do Carmo, com duas amigas, subias a rua e parecias mesmo tu, bonita e doce como só tu, se bem que nem te conheço, vi-te uma vez só e ainda não sei bem se estava a sonhar, foi surreal ou algo assim, sussurraste palavras mas eu, bêbado pelo momento, fiquei apenas concentrado nos teus olhos. Por isso, quando passei por ti ao longe, tive dúvidas e tive medo e não soube o que dizer. Inventei para mim uma desculpa, ou duas, para não te ter ido falar. Dizem que a noite pode ser assim muitas coisas, pode ser um castigo ou pode ser um bálsamo, nessa incerteza nocturna eu afastei-me das luzes e corri muito pelas ruas de pedra dura, corri a noite toda às voltas pelos caminhos do castelo. Quando voltei à rua do Carmo, sozinha e fria, já lá não estavas. Tu, ou alguém que para mim eras tu. Apanhei o avião e voei para longe. Estava frio, agasalhei-me com um cobertor e tapei os ouvidos com os headphones ligados ao leitor de mp3 pequenino escondido no bolso do casaco. Olhei para o céu. “When you wish upon a star”, cantava uma menina aos meus ouvidos. Não eras tu, dessa vez ficaste por casa, fizeste silêncio ao convite que te fiz para conhecer o mundo e preferiste ficar embrulhada nos teus lençóis confortáveis a bebericar chá de menta. Eu mantive a promessa feita numa noite portuguesa de Inverno. Sabes, esteve mais frio do que pensei e o cobertor foi demasiado pequeno, mas vi a chuva de cores mais bela que alguma vez os meus olhos sonharam.
NC

quarta-feira, março 23, 2005

A noite estranha do mundo

Chovia e era invulgar. As ruas vazias. Ficávamos alheados da meteorologia em casa, enroscados no sofá, a mirar pela janela auroras boreais imaginárias e a comer ananás enlatado com a data de validade quase no fim. Algumas frases faziam sentido, folheávamos livros escolhidos ao acaso e fazíamos as nossas bocas sorrir. Havia um mapa de Nova Iorque na parede e fazíamos planos da viagem a Londres. Sabes tudo o que não dissemos dessa vez? O silêncio, tem dias, consegue ser mais pesado que toda a força que possamos querer ter. Dessa vez deixámo-nos ficar, imóveis e mudos, lá fora uma discussão animava a calçada triste e cá dentro éramos estátuas de gente sem nada, estátuas inundadas de melancolia. No frigorífico havia bacon que partíamos em bocados, cubinhos cuidadosamente desenhados, e misturávamos nos ovos mexidos onde punhas sempre pimenta a mais. O vazio de palavras era enganado pela música da sala, um disco perdido do ano de 1995 tocava as nossas músicas adolescentes dos Smashing Pumpkins, mas nem a música podia disfarçar o incómodo que teimávamos ser. Hoje é o dia, mesmo sem sol, não está frio, há vento moderado e tento só abstrair-me de tudo para que a dor não grite mais alto. As paredes do hospital são tão cruéis que quero fugir para muito longe, para o jardim verde lá fora, quero voar da janela para o infinito longe e esquecer que a vida é isto, a verdade é demasiado grave. Escondo-me nas memórias boas de um tempo que não volta, escondo-me no tempo em que correr e sorrir e brincar com carros de bombeiros era normal e sabia bem, há algo que me afasta do horizonte mas nunca é demasiado tarde para tentar. São cinco da tarde e o mundo parou, o avô não me reconhece quando lhe agarro a mão, não me pergunta como vai o trabalho e não me diz para cortar a barba, eu não lhe digo nada, não se pode dizer nada. Sobramos nós, as rodelas de ananás triste, os cubinhos de bacon pequenos, as músicas dos Pumpkins, and we don't know just where our bones will rest, mas dessa vez estavas longe e só me pude reconfortar quando, depois do prometido chá de menta, voltaste para que contasse segredos ao teu umbigo.
NC

quarta-feira, março 09, 2005

Debaixo da mesa, duas pernas que se cruzam (sem lá estarem)

Sabes aquelas embalagens antigas de fermento Royal? Fermento em pó, Royal Baking Powder. Mergulhamos no rótulo que repete a imagem da embalagem numa infinidade de imagens cada vez mais pequenas. Como se olhares para os olhos de alguém, como se mergulhares nos olhos de uma pessoa com alma. Não sabem as tristezas que me deixaram, aqueles olhos verdes que eu nunca beijarei. A noite é fria como já não é moda e há só uma imagem a passar à minha frente, uma imagem mil vezes repetida, uma imagem que se intromete à frente da televisão e não me deixa estar com atenção ao filme a preto e branco, uma imagem projectada do nada, uma imagem quieta e cada vez um pouco mais difusa, o rosto fixo, a calma, as palavras. Rescrevi os passos e os caminhos das colinas, rescrevi as mãos que se afagam na incerteza da noite. Rescrevi a posição das coisas em casa - desarrumei-me, para não te encontrar. Rescrevo ainda a posição dos astros, para que não te possa encontrar debaixo do mesmo céu, sobre esse efeito fantasma que é não saber se as coisas realmente existem para lá de nós. Rescrevo-te diariamente para disfarçar a imobilidade da tua não presença nos espaços. Delineio continuamente novos gestos e olhares. Mas é na intermitência da luz, no instante que separa os frames projectados uns em cima dos outros; é no fragmento de respirar em que pestanejo, que identifico a tua marca nos copos de algum bar, ou num certo sussurro de vento que a rua me possa trazer. É na imensa sugestão das imagens que te revejo, num movimento banal, resumido num instante de segundo por uma qualquer actriz cujo nome desconheço. Trago comigo esta imagem desfocada de uma memória impossível de beber, afasto-me das ideias e vou à rua provar o sabor da noite em Alfama para descansar por fim numa chávena pequena de café quente. Mas a noite é enorme e sei que esse fantasma me vai perseguir, ainda que eu não passe de espírito ténue e imbecil anestesiado pela sombra de uma mulher a quem chamam Ingrid Bergman numa noite de nevoeiro.
NC

quarta-feira, fevereiro 23, 2005

A voz embargada em três segundos de razão

As flores desenhadas na parede antiga da casa verde da rua das Gáveas, ali como quem sobe a alucinação da noite bêbada e sorri pelo meio dos grupos de gente arranjada, bonita e perfumada, as flores perdem-se em cornucópias e morrem abandonadas com a falta de atenção dos viajantes dos rios de calçada. Os distraídos seguem encharcados de vida, apesar de não chover e fazer um pouco de frio que o cachecol de cores vivas atenua, os distraídos seguem com a obrigação de matar o tempo em volta de uma mesa antiga, de copos frios e de música fora de moda, músicas de passado inocente que à luz da actualidade poderiam ser uma máscara de vergonha, mas a nuvem do tempo faz bem em ocultar a verdade. Há-de ser, na madrugada do mundo, há-de ser fresca, há-de ser virgem e há-de ser pura. Wagner há-se ser sempre sublime, berra o skinhead de simpatia nacionalista que debita pontapés ao ritmo da música acelerada, o heavy-metal dos oitentas nunca vai ser ultrapassado, sorri um saudosista ao lado. Terna é a noite, apesar do frio e do sangue que um beco escuro esconde, terna é a noite na saliva das três adolescentes fluorescentes que espalham sorrisos promovidos a vinho tinto, terna é a noite num abraço raro entre amigos que se demoram numa emoção mal explicada, terna é a noite numa janela aberta, terna é a noite num filme de mil novecentos e sessenta e cinco realizado por Jean-Luc Godard. As faces permanecem imóveis e nuas, revelam expressividade de funcionário de guichet. Salta daí de cima, três andares é pouca coisa, salta que eu agarro-te, rapariga. Vem conhecer o mundo, Margarida, vem conhecer o mundo, eu pagos os copos. Tira só mais uma foto, um último instantâneo à nossa pequenez mundana e depois esconde as asas, a arrecadação pequena ganha finalmente sentido, esconde as asas e vem provar o prazer líquido de ser humano e banal e triste e a cores, mergulha na gravidade, cola os pés ao chão e segue-me rua acima, a correr e a sorrir e a arfar de cansada e continua, como se fosse Verão em Fevereiro. Os habitantes da terra, que se dividem entre os que procuram a perfeição sempre um pouco mais além e os que se satisfazem com um hambúrguer, os habitantes da terra não sabem que são exactamente os mesmos e que as suas diferenças são demasiado invisíveis para terem algum significado e no entanto fazem disso religião, lutam e cospem sangue pelas ideias, idiotas, idiotas, idiotas, e todos sabem que quando a cabeça se agacha no peito do amante tudo o que sobra é lixo e é inútil e mesmo assim teimam prosseguir no nada. Ainda que a manhã seguinte seja uma certeza.
NC

quinta-feira, fevereiro 03, 2005

Modos Diferentes de Amar / Mulheres

Esta noite sonhei contigo, Isilda. Entraste pelo meu sonho adentro sem eu te dizer nada. Sorrias e estavas bonita, como as últimas memórias que guardo de ti, a lembrança da miúda mais bonita da turma. Devia ser verão, pois estavas com uma t-shirt pequenina que deixava perceber o bikini, e sorrias como as flores coloridas que trazias por baixo. Nesta noite falámos muito, contei-te as novidades todas, contaste as tuas novidades todas, falámos do tempo todo que passou, do teu curso inacabado e até falamos daquele concurso de misses em que entraste e ganhaste um prémio. Sorrias e eras bonita e, como um filme que acaba passadas duas horas, naquela brevidade de tempo nocturno fomos felizes.

Desembrulho-me dos lençóis ternurentos e volto a ficar sozinho, dispo a roupa (nunca gostei de pijamas mas o frio irónico obriga a alterar as convicções) entro no duche e a água quente acorda-me para a brutalidade da manhã. O microondas inteligente aquece o leite e saio para a vida lá fora.

Recebo um toque no telemóvel: “Cheguei. Estou à entrada, vem cá ter. Até já. Bjs”. Encontramo-nos na fnac do Chiado com um par de beijos seguidos de um café que aquece a tarde. Vens a minha casa. É bonita, dizes. Mudei-me há pouco, digo-te. Vou oferecer-te qualquer coisa para a tornar ainda mais bonita, dizes. Sorrio, só. Ficas sentada no sofá enquanto eu ponho um disco a tocar, música calma, uma escolha premeditada: tu gostas do piano de Bill Evans, eu coloco um disco de Bill Evans. “Sunday at the Village Vanguard”. É domingo, não estamos em Nova Iorque nem num clube de jazz de uma zona fina da cidade, mas a tarde cai devagar e sabe bem. Vais dizendo coisas variadas e mostras as compras acabadas de fazer: duas camisolas e roupa interior comprada na loja Women’s Secret. Mostras-me como funciona o wonderbra e eu digo que não gosto das tuas compras, tu provocas-me dizendo que vestido fica muito melhor… Não chegamos a confirmar a veracidade das tuas palavras, que fazes sempre acompanhar de um sorriso onde ocultas a possível maldade com uma dose de inocência verdadeira. Sinto-me culpado desta amizade sexy e fico a pensar na improbabilidade de se ser fiel. Dizes que é tarde e tens de ir, mas prometes voltar em breve.

Saio à rua e o jornal triste não traz notícias sorridentes. Sento-me no café a observar as pessoas aceleradas que passam, um rapaz de cabelo grande tropeça e espalha livros e folhas pelo chão e a multidão segue apressada. Demoro-me à mesa com a chávena vazia e mirar títulos cinzentos e penso em como morder a vida. Envio uma sms. Poucos minutos depois o telemóvel nervoso avisa-me que vens.

Trouxeste o cabelo escondido, no rabo-de-cavalo do costume, a ocultar a magia toda que os cabelos soltos prometem. Anita, naquela noite fomos o mundo todo. Os copos de um tinto espanhol, Conde de Valdemar Crianza Rioja, doce e suave como os teus lábios, amoleceram os corpos que se deixaram deslizar pela brandura quente da noite. Comecei por ferver água para o chá e começaste por deixar transparecer dois centímetros da blusa à medida que me abrias a alma. Fomos desejo ondulante guiado pelas voltas ternas do piano que ainda tocava desde o Village Vanguard de Nova Iorque, deixei a aparelhagem ligada toda a tarde e toda a noite, e mesmo deste lado do Oceano não se perdia nem uma tecla de emoção, as vidas destes desconhecidos tristes eram as mesmas. Beijamo-nos demoradamente, acendeste o cigarro e adormecemos a pensar que foi bom. Na manhã seguinte conseguiste ser mais fria que a pedra de gelo que arrefeceu o meu moscatel da noite anterior e foste embora sem fazer barulho. Continuei perdido no mundo e não foste tu quem me salvou. Durante a noite sonhei com a Isilda.
NC

quinta-feira, janeiro 13, 2005

Relação Feliz a Curto Prazo, Setembro

Como as mais frias tardes de Dezembro, chegaste. Trazias contigo uma espécie de sufoco, parecido com um cachecol mas que não deixava respirar, enrolada ao pescoço. Desapertei-te os botões para que pudesses respirar um pouco mais. Soltavas palavras. À medida que a roupa se sumia, as vontades encharcavam-se e roubava-mos o sentido às coisas. Era noite e já não foste embora.

Foi no prazer do calor de Agosto que te sorri primeiro. O teu corpo boiava no rio apoiado numa bóia grande que outrora havia funcionado como roda grande de tractor. Revi-te, a miúda mais bonita da escola, dois anos mais nova que eu. Deves ter reconhecido o rapaz pequeno dois anos acima do teu ano. Sorriste, pelo menos. Na escola nunca falamos muito, pois não? Nesse dia, no rio de Agosto estava pouca gente e a vontade de sorrir foi maior que o socialmente correcto para dois desconhecidos que pela rua evitam sempre esgares comprometedores. Eu nadava e tu boiavas e éramos tudo o que podia haver. Já não sei se a minha namorada sabia que tinha ido nadar, nada interessava. Éramos os dois.

Uma vez a meio da infância fui com o meu tio de mota até ao rio. Foi num dia em que não fiquei a ouvir a avó contar histórias do homem que carregava às costas feixes de lenha para a lua. Fui na mota, agarrado com muita força à cintura do meu tio para não cair. Ele ia buscar alguma coisa que ficou esquecida no campo que fica perto do rio. Depois de lá chegarmos ao campo convenci-o a irmos ao rio. Ele levou-me lá e nunca ninguém soube deste desvio. A água corria e na margem havia vacas grandes a comer erva. O meu tio, muito baixo e tímido, nunca se casou e encontrou a razão da existência nas pipas de vinho tinto. Quando os meus pais descobriram o vício do vinho foi mandado para casa de uns tios onde trabalhava no campo e ninguém fez mais perguntas.

Chegaste na noite e disseste uma coisa devagar. Eu disse que sim. Nunca soube dizer que não, principalmente a uma mulher bonita, nunca soube dizer que não, principalmente a uma mulher bonita enrolada num vestido curto, nunca soube dizer que não, principalmente a uma mulher bonita enrolada num vestido curto a sussurrar coisas quentes ao ouvido. Eu sorri-te e fomos felizes por um tempo. O tempo é sempre curto para fazermos tudo o que queremos. E o tempo é sempre longo demais porque passado algum tempo morrem-nos as febres do amor.

Essa primeira noite que se reflecte hoje no tecto vazio para onde estou a olhar há duas horas e quarenta e sete minutos foi o princípio do fim. Foi o princípio de um mês de ternura lubrificada em que cada momento era intensificado ao limite. Até perceber que não havia mais nada. Fomos carne por um tempo. Foi o princípio do fim da ilusão que pode haver calor para sempre, foi o fim do engano do “para sempre”.

Quando aos onze anos, no casamento de uma prima, dancei com a Cristina, uma colega de turma mais alta e bem feita (pelo que me lembro), tive pela primeira vez consciência do desejo. Nessa altura deveria andar apaixonado por alguma das dozes colegas de turma ou por alguma rapariga mais nova mas mais bonita da classe mais abaixo. Mas a Cristina foi, nessa dança, o amor.

Hoje não tenho um rio onde me possa esconder e não sei por que caminhos desviados anda a mota velha do meu tio. Hoje chove lá fora e tu, que foste à rua para sempre, não levaste guarda-chuva. Aqui dentro está frio, ainda não tive coragem de ligar o aquecedor porque eu também estou frio por dentro e assim é mais fácil de sofrer, ao mesmo tempo que os espirros avisam que fiquei constipado. Uma vez amei. Talvez fosses tu ou alguém parecido. Não interessa, nunca ninguém soube e ninguém vai querer saber das paixões que não valem nada.
NC

quarta-feira, dezembro 15, 2004

A minha boca a beijar o teu umbigo

São onze e meia da noite e o Nick Cave canta músicas tristes à nossa volta. Minha querida, não te quero assaltar. Quando as minhas mãos se deixam levar pelo desejo de conhecer a tua pele doce debaixo da camisola não te quero assaltar, não te quero levar nada. Quando os meus lábios não resistem a aproximar-se um pouco mais dos teus não quero levar nada teu comigo. Tu já me roubaste o meu coração há muito tempo, eu quero apenas provar-te um pouco mais. Quero apenas que sejas um bocadinho mais minha. E de todas as vezes que te abraço com força e de todas as vezes que deixo a boca escorregar para o pescoço e de todas as vezes que a mão investiga a perfeição do teu umbigo eu só te quero a ti. Nada mais. Apenas terminar a noite como Deus quis assim que inventou o corpo e o desejo. Porque tu sabes que isto que arde em nós é impossível de esconder, a lembrança de cada curva do teu rosto consome-me todo, agora é tarde, é impossível evitar este desejo imenso que me invade os dias e interrompe os sonos. Porque a memória do sabor dos lábios mais saborosos do mundo é forte demais para que consiga atirar para trás da porta esta vontade de te engolir inteira na minha vida. Porque me fazes sofrer em cada não que dizes, essa tua palavra preferida tão dura e curta e fria, eu quero apenas tirar o peso de tudo em que possas pensar e continuar, de cada vez que os nosso olhos se cruzam, a celebração da vida toda que há em nós. Porque quero que deixes de pensar em tantas coisas e simplesmente te deixes levar pelo vinho tinto, pela música e pela noite. Só a voz cavernosa do Nick nos interrompe:

and the mercy seat is waiting
and I think my head is burning
and in a way I'm yearning
to be done with all this measuring of truth
an eye for an eye
a tooth for a tooth
and anyway I told the truth
and I'm not afraid to die


E sem mais preocupações ficaremos só duas pessoas felizes afogadas no sofá. Tu, aliviada do peso das camisolas excessivas, com a pele toda a olhar-me; eu, de sorriso maior que o mundo todo, a beijar a tua barriga perfeita descoberta. Sem interrogações ou pensamentos desnecessários seremos apenas dois corpos que gostam muito de se abraçar. E apesar do frio do Inverno e da nossa falta de roupa (ficas tão bonita deitada no sofá só de cuequinhas pequenas) continuamos quentes, no corpo e por dentro. E tu, completamente molhada de beijos, não vais dizer não e vais sorrir e vais dirigir num sim a tua boca para mim. A noite está quase a cair e, de qualquer modo, disse-te a verdade. E eu não tenho medo de morrer.
NC

quarta-feira, dezembro 01, 2004

Em Nome do Espírito Santo

Dedicado à Memória de Albert Ayler [1936-1970]

Quando, numa manhã nebulosa de 25 de Novembro, descobriram o corpo no rio o mundo soube que não iria ouvir nunca mais aquela voz. Aquela voz tenebrosa, que anunciava a marcha dos santos, dos espíritos e dos fantasmas, dos mortos e dos vivos, era única e era fogo e um dia apagou-se afogada.

Deves ter para dizer coisas infinitas que esse olhar esconde, deves trazer milhentos pensamentos presos por fios, à espera do instante em que uma frase solte a água toda da barragem. Deves arrastar atrás de cada pensamento uma réstia de sabor, uma lembrança de passado, uma imagem de um banho na água fria de um rio longínquo. Nada sei em frente aos teus olhos e por isso sorrio só por te ter aqui. Abraça-me.

Dobramos a esquina e seguimos à loja de acessórios de moda, onde a Carla queria procurar uns brincos verdes que fizessem bem ao cachecol verde, dobramos a esquina da Rua Garrett animada pelo ambiente de Natal e a fúria das compras e continuamos até ao fundo da Rua Anchieta. Do lado de fora da loja revejo-a. O cabelo é o mesmo, a cintura magra e as pernas altas e um sorriso duvidoso, uma expressão interior imperturbável, a cara tão bonita como da última vez.

Reencontrei-te, disse para mim, enquanto engolia o sorriso que acabava de nascer. Olhaste também, eu vi. Deixaste de aparecer no pequeno café que servia almoços na Póvoa de Santo Adrião e pensei que fosse o fim dos nossos encontros secretos, que disfarçávamos de casuais, fazendo de desconhecidos que comiam a hora de almoço em hambúrgueres e bifanas sempre iguais que só algum excesso de maionese tornava comestível. No entanto sempre falamos. Nesses dias todos, apesar do silêncio, dissemos coisas. O olhar cruzava-se e havia conversa, olá, olá, também estás por aqui, pois é, estás tão bonita hoje, não digas essas coisas, a sério, o hambúrguer hoje está bom, não mudes a conversa, vou beber o café, eu também, adeus até amanha, adeus até amanhã.

Como num filme ou numa história banal, encontrei-te e tudo voltou a ser como era dantes. Talvez num dia desta semana, ao final da tarde, no regresso do trabalho, ganhe coragem e leve um papelinho com o endereço de um site na Internet onde escondi um poema para ti, para que saibas que tens um sorriso que combina tão bem com o cabelo preto desalinhado e as cuequinhas laranja (desculpa, não resisti), vou dizer coisas, se tiver coragem, ou talvez nunca te diga nada e nunca leias isto e nunca descubras que és para mim uma espécie de sol.

Talvez tudo possa acontecer. Há 34 anos morreu afogado Albert Ayler, um homem que transformava o saxofone no depósito da sua alma por onde rezava a todos os santos do céu e que certa vez numa entrevista, quando perguntado sobre o que fazia quando não estava a tocar respondeu: “gosto de me sentar e olhar para a minha mulher”. Enquanto deliro ao som das pedras de gelo no copo meio vazio e das notas vagabundas de um concerto francês, copio-lhe a intenção e miro-te, desculpa, não te sintas observada, sei que não és minha nem és mulher, és apenas a miúda gira da loja de acessórios de moda, mas miro-te, deixa-me olhar só um pouco mais, perco-me na lembrança da imagem difusa do teu rosto, mas sei que é assim que tudo vale a pena.

NC

quarta-feira, novembro 17, 2004

Pequena Crónica do Segundo Melhor Guarda-Redes do Mundo

A tarde está impecável, amena e clara, é cedo, falta muito até a noite tombar e acabar com a luz. É só um minuto, caramba! Eles chamam-me, está na hora do jogo, é só mais um bocadinho, estou mesmo a acabar este exercício de matemática, já vou. Aqueles trengos já foram para o quintal, a esta hora têm os ténis todos cobertos pela terra e, enquanto espetam os paus que foram buscar ao monte da lenha para fazer as balizas, já provaram as uvas que amadureceram mais cedo. Daqui a duas ou três semanas o avô vai-nos chamar, subimos todos para o tractor e vamos para o campo, cada um em cima de um escadote, cada um com tesoura de podar, todos a vindimar e devorar, indiferentes a avisos de diarreias malditas, cachos maduros e grandes e verdes e pequenos. Isso é para a semana ou depois, por agora esta equação de x e y, de variáveis impossíveis e de certeza, quase que aposto, que isto não tem solução, é só uma maneira da professora, que anda sempre de calças justas que me distraem em cada sessenta minutos por cada hora de aula, nos obrigar a andar às voltas em busca de soluções que não existem, como o Indiana Jones à procura de tesouros dourados, mas a mim ninguém me dá uma pistola e as minhas aventuras matemáticas são bem mais tristes e, por vezes, mais arriscadas. Oiço o meu irmão e os meus primos lá fora, todos em risos e gritos de golo que me deixam mais atrapalhado nas contas e eu a ver em cada número um jogador, o Marco, o Tó-Zé, o Tiago, o João, o Francisco, o Carlos Daniel e o Bruno, só falto eu. A tarde avisa que se vai embora e é então que percebo, hoje já não jogo com eles, com um pozinho de sorte ainda vou a tempo de ver na televisão uns gatos de poderes extraordinários, talvez os Thundercats ainda tenham pena de mim e a solução desta matemática oblíqua me surja num repente tão rápido como o sacar da espada dos gatos retro-futuristas da televisão. Ou então talvez nada aconteça e às minhas tentativas rabiscadas de alcançar o cume da sabedoria algébrica não haja resposta, talvez pelo meio da tarde o único prazer autorizado que me sobre sejam estes iogurtes de chocolate aos quais adiciono um pouco de açúcar porque assim ficam sempre mais saborosos, talvez a vida seja mais que isto ou talvez não, um iogurte com açúcar é sempre mais doce mesmo quando há problemas maiores que nós. E há os dias em que os iogurtes são adiados, o lanche cola-se ao fim do dia, depois do regresso do rio onde mergulhamos, aprendemos a nadar, quando a maré está em baixo atravessamos a pé, quando no futuro houver mais confiança atravessamos a nado. Hoje houve iogurtes, mas já não despacho a embrulhada de números rabiscados em papéis arrancados às capas de argolas, folhas amarrotadas a alimentar o caixote do lixo magro. Eles jogam lá fora. Reencontramo-nos há alguns meses. Anos mais velhos, mais cansados e sérios, quase todos respeitáveis trabalhadores, adultos. Voltamos a olhar as mesmas faces, agora enrugadas pela visão da avó no caixão imóvel ao centro do cemitério, e em cada pá de terra atirada para a cova enfeitada de flores tristes percebemos que é mais que a distância do tempo que nos afasta, nunca mais vamos jogar à bola e gritar golo, eu não vou à baliza, não vou voar mais rápido que o golo e não voltarei a ser o segundo melhor guarda-redes do mundo a seguir ao Sebastiano Rossi.
NC