A voz embargada em três segundos de razão
As flores desenhadas na parede antiga da casa verde da rua das Gáveas, ali como quem sobe a alucinação da noite bêbada e sorri pelo meio dos grupos de gente arranjada, bonita e perfumada, as flores perdem-se em cornucópias e morrem abandonadas com a falta de atenção dos viajantes dos rios de calçada. Os distraídos seguem encharcados de vida, apesar de não chover e fazer um pouco de frio que o cachecol de cores vivas atenua, os distraídos seguem com a obrigação de matar o tempo em volta de uma mesa antiga, de copos frios e de música fora de moda, músicas de passado inocente que à luz da actualidade poderiam ser uma máscara de vergonha, mas a nuvem do tempo faz bem em ocultar a verdade. Há-de ser, na madrugada do mundo, há-de ser fresca, há-de ser virgem e há-de ser pura. Wagner há-se ser sempre sublime, berra o skinhead de simpatia nacionalista que debita pontapés ao ritmo da música acelerada, o heavy-metal dos oitentas nunca vai ser ultrapassado, sorri um saudosista ao lado. Terna é a noite, apesar do frio e do sangue que um beco escuro esconde, terna é a noite na saliva das três adolescentes fluorescentes que espalham sorrisos promovidos a vinho tinto, terna é a noite num abraço raro entre amigos que se demoram numa emoção mal explicada, terna é a noite numa janela aberta, terna é a noite num filme de mil novecentos e sessenta e cinco realizado por Jean-Luc Godard. As faces permanecem imóveis e nuas, revelam expressividade de funcionário de guichet. Salta daí de cima, três andares é pouca coisa, salta que eu agarro-te, rapariga. Vem conhecer o mundo, Margarida, vem conhecer o mundo, eu pagos os copos. Tira só mais uma foto, um último instantâneo à nossa pequenez mundana e depois esconde as asas, a arrecadação pequena ganha finalmente sentido, esconde as asas e vem provar o prazer líquido de ser humano e banal e triste e a cores, mergulha na gravidade, cola os pés ao chão e segue-me rua acima, a correr e a sorrir e a arfar de cansada e continua, como se fosse Verão em Fevereiro. Os habitantes da terra, que se dividem entre os que procuram a perfeição sempre um pouco mais além e os que se satisfazem com um hambúrguer, os habitantes da terra não sabem que são exactamente os mesmos e que as suas diferenças são demasiado invisíveis para terem algum significado e no entanto fazem disso religião, lutam e cospem sangue pelas ideias, idiotas, idiotas, idiotas, e todos sabem que quando a cabeça se agacha no peito do amante tudo o que sobra é lixo e é inútil e mesmo assim teimam prosseguir no nada. Ainda que a manhã seguinte seja uma certeza.
NC
5 Comments:
Gostei mto dos textos que li por cá! Parabéns! http://oblogdorapaz.blogs.sapo.pt
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