quinta-feira, julho 07, 2005

Modo Breve de Morrer


[Ilustração de Luísa Gonçalves]

Sente o suor que escorre de mim e diz-me boa noite, embora seja apenas tarde e este cubículo fechado tresande a maldade empresarial, acaba com o teu amor em part-time e vem ter comigo de vez, mata a ansiedade que chove em mim, pesada, deixa-me ser teu assim muitas vezes fechados em suor ou então só mais uma vez mas com o tempo todo, para que o mundo acabe bem. E molhado, como tu quando me sentes no teu ouvido a trincar esse breve momento de céu, deixa-me morrer, mas por amor de Deus, larga-me o sapato e deixa-me a camisa, que isto não são modos de receber clientes. E antes que a chuva acabe de vez lá fora vai-te embora que ele já deve estar à tua espera, e se fosse mentiroso como a primavera dizia-te que não me importava que fizesses o mesmo, só por imaginar sempre a tua pele ao dispor dos meus dentes afiados de calor. E nem que passasse mais meia hora conseguia perceber a frase que deixaste presa ao meu peito, triste, peludo e nu, pensativo pelo resto da semana até ao dia em que te vir sozinha às compras no centro comercial e te convença a levar o detergente em promoção para que acabemos mais uma vez deitados a beber os dias líquidos cheios de pressa para que a cerveja não fique morta. Como nós.

Vem. Responde-me de vez, não fujas à verdade vermelha que ainda não é tempo de cerejas. Diz-me só que afinal sabias tudo desde o princípio. Eu não me importo mesmo nada. Se a verdade é assim tão turva como poderemos nós alguma vez provar? Entra na cozinha marcada pelo óleo de fritar e olha-me, que me partes toda. Entra, mas não fiques calado como andas sempre, taciturno como sombra que sempre foste, apenas erguido quando obrigado. Fecha a janela que está frio, e chove, está frio, e chove, está frio, e chove, está frio. A televisão ligada é sinal que nunca aqui estiveste, sou só e eu sozinha perdida do mundo obrigada a ser vítima do mundo. Somos sempre vítimas quando queremos. Mas nunca me quiseste, pois não? Fecha a janela, que chove, é frio lá fora, chove. Nem a tarte de maçã que te quis oferecer e tu nem um sinal, nem uma fatia, nem só para provar, nem uma resposta. Por favor. Nem assim. Eu de joelhos, tu nada. Mostrengo de sombra que não és nada, uma tarte dada era só um modo triste de te dizer mais uma vez que me ajoelho para ti sempre que queiras e queria tanto que me quisesses, não queres saber. Já chega. Rouba-me e vai-te embora.
NC

15 Comments:

At 10:46 da manhã, Blogger polegar said...

bolas, encomendei um que acabasse em bem! ;)
mas tristeza bem escrita é sempre bonita. será que esses dois se vão entender lá para a frente com tartes de maçã e suor...? ao menos na minha cabeça fica pendente...

 
At 3:02 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Encomendaste e vais tê-lo, Polegar. O Nuno é que, escondido naquela barba rala de adolescente, é um insubordinado...

 
At 4:22 da tarde, Anonymous Anónimo said...

"Homens...uns tontos!
Ouve: escondes-te de ti…porquê?
Emprestas as tuas batalhas
Para que outros lutem por ti…porquê?
Ofereces teus sonhos por sonhar
Para que outros sonhem por ti…porquê?
Deitas a perder recordações,
Pedaços de ti, pedaços de nós…porquê?..."

Aceita a fatia de tarte e deixa-te envolver no suor

 
At 5:43 da tarde, Anonymous Anónimo said...

LOL =)

 
At 11:07 da tarde, Blogger Patrícia Evans said...

sentes o cheiro da tarte de maça quente que sai do forno? cheira a passas e a canela e canela e a maça! e é tão bom... tão bom quanto saber-te a ti e ter-te por perto!
beijos amiguito;-)

 
At 1:31 da tarde, Blogger Nuno Catarino said...

O Paulo tem razão: escondido nesta barba rala de adolescente insubordinado ainda não acedi ao pedido, mas estará para breve, é uma promessa. susanisca e patrícia,
as tartes de maçã são mais saborosas com uma pitada de canela. Beijos

 
At 5:12 da tarde, Blogger Patrícia Evans said...

tudo se torna mais intenso se deitar-mos uma pitada de algo embriagador para os sentidos...

 
At 11:11 da manhã, Blogger Catarina Santiago Costa said...

Fantástico...
Os desejos daquele que ama estão sempre votados à insatisfação.
Se tens barba de adolescente imberbe decerto não escreves como tal. :)

 
At 4:44 da tarde, Anonymous Anónimo said...

mas depois do efeito embriagador de algo que se possa acrescentar o que resta então?
saboreia com a paixão de estar vivo não procures o que possa enebriar os sentidos, as emoções são o melhor vinho, da melhor casta da região onde habita o teu ser

 
At 12:58 da manhã, Anonymous Anónimo said...

Linda a ilustração :)

 
At 10:41 da manhã, Anonymous Anónimo said...

Começo a ficar invejoso com isto, o nuno tem ilustrações e eu não!

acho que vou amuar.
paulo

 
At 6:12 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Cuidado com o que se deseja...pq podemos eventualmente consegui-lo!! Querer, quando se sabe que não deviamos querer!! ... NC escreves muito bem :) Beijos Paulo

 
At 10:37 da tarde, Blogger Nuno Catarino said...

A ilustração é da excelsa Luísa Gonçalves. :) Muito obrigado pelos doces comentários. Beijos.

 
At 8:57 da tarde, Blogger António Caeiro said...

fantástica a ilustração!!! ... da minha cunhada.

 
At 9:41 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Sim António, as ilustrações são boas, de facto. Isto, porque os textos, Meu Deus!, são de fugir... cambada de putos fartos de escrever para a gaveta que vomitam os seus impropérios na moda cibernética nacional dos blogues. Mas sim, vá voltando, as ilustrações valem a pena!

;)

paulo

 

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