quarta-feira, novembro 17, 2004

Pequena Crónica do Segundo Melhor Guarda-Redes do Mundo

A tarde está impecável, amena e clara, é cedo, falta muito até a noite tombar e acabar com a luz. É só um minuto, caramba! Eles chamam-me, está na hora do jogo, é só mais um bocadinho, estou mesmo a acabar este exercício de matemática, já vou. Aqueles trengos já foram para o quintal, a esta hora têm os ténis todos cobertos pela terra e, enquanto espetam os paus que foram buscar ao monte da lenha para fazer as balizas, já provaram as uvas que amadureceram mais cedo. Daqui a duas ou três semanas o avô vai-nos chamar, subimos todos para o tractor e vamos para o campo, cada um em cima de um escadote, cada um com tesoura de podar, todos a vindimar e devorar, indiferentes a avisos de diarreias malditas, cachos maduros e grandes e verdes e pequenos. Isso é para a semana ou depois, por agora esta equação de x e y, de variáveis impossíveis e de certeza, quase que aposto, que isto não tem solução, é só uma maneira da professora, que anda sempre de calças justas que me distraem em cada sessenta minutos por cada hora de aula, nos obrigar a andar às voltas em busca de soluções que não existem, como o Indiana Jones à procura de tesouros dourados, mas a mim ninguém me dá uma pistola e as minhas aventuras matemáticas são bem mais tristes e, por vezes, mais arriscadas. Oiço o meu irmão e os meus primos lá fora, todos em risos e gritos de golo que me deixam mais atrapalhado nas contas e eu a ver em cada número um jogador, o Marco, o Tó-Zé, o Tiago, o João, o Francisco, o Carlos Daniel e o Bruno, só falto eu. A tarde avisa que se vai embora e é então que percebo, hoje já não jogo com eles, com um pozinho de sorte ainda vou a tempo de ver na televisão uns gatos de poderes extraordinários, talvez os Thundercats ainda tenham pena de mim e a solução desta matemática oblíqua me surja num repente tão rápido como o sacar da espada dos gatos retro-futuristas da televisão. Ou então talvez nada aconteça e às minhas tentativas rabiscadas de alcançar o cume da sabedoria algébrica não haja resposta, talvez pelo meio da tarde o único prazer autorizado que me sobre sejam estes iogurtes de chocolate aos quais adiciono um pouco de açúcar porque assim ficam sempre mais saborosos, talvez a vida seja mais que isto ou talvez não, um iogurte com açúcar é sempre mais doce mesmo quando há problemas maiores que nós. E há os dias em que os iogurtes são adiados, o lanche cola-se ao fim do dia, depois do regresso do rio onde mergulhamos, aprendemos a nadar, quando a maré está em baixo atravessamos a pé, quando no futuro houver mais confiança atravessamos a nado. Hoje houve iogurtes, mas já não despacho a embrulhada de números rabiscados em papéis arrancados às capas de argolas, folhas amarrotadas a alimentar o caixote do lixo magro. Eles jogam lá fora. Reencontramo-nos há alguns meses. Anos mais velhos, mais cansados e sérios, quase todos respeitáveis trabalhadores, adultos. Voltamos a olhar as mesmas faces, agora enrugadas pela visão da avó no caixão imóvel ao centro do cemitério, e em cada pá de terra atirada para a cova enfeitada de flores tristes percebemos que é mais que a distância do tempo que nos afasta, nunca mais vamos jogar à bola e gritar golo, eu não vou à baliza, não vou voar mais rápido que o golo e não voltarei a ser o segundo melhor guarda-redes do mundo a seguir ao Sebastiano Rossi.
NC