quarta-feira, abril 20, 2005

Fusilli Tricolore, Baby



[Ilustração de Sara Lucas]

Começa por pôr a água ao lume, não te esqueças do sal, do alho e de um fiozinho de azeite. Polvilha também com uns pozinhos de pimenta e noz moscada. Agora lava uma maçã verde e descasca-a, corta a maçã em cubinhos pequenos, corta o queijo e o fiambre em bocadinhos pequenos iguais. Entretanto não deixes a água ferver demais, assim que esteja no ponto põe a massa a cozer. No fim da cozedura, escorre a água, mistura os bocadinhos de maçã, queijo e fiambre e junta um pacote de natas. Leva ao lume dois minutos, enquanto mexes com a colher e salpica com algumas passas. Está pronto a servir, desliga o lume. Ficas bonita com o avental enrolado nessa cintura magrinha. Mas agora despe o avental enquanto acabo de pôr a mesa. Apesar de tudo prefiro ver-te o umbigo descoberto. Enquanto ponho a toalha, abre a garrafa de tinto alentejano. Bom apetite. As palavras misturam-se pelo meio das garfadas e dos goles de vinho que engolimos. Contas as coisas todas que te fazem sorrir e partilhamos excertos de vida em sorrisos e em dois segundos já não estamos à mesa, num instante fugimos e somos gatos a passear pelos beirais das casas antigas, saltamos com uma agilidade impossível, corremos os telhados todos do bairro esquecido e só paramos no telhado da casa mais alta, onde o reflexo da lua é mais quente. Dizes coisas a brincar e foges, eu corro atrás de ti e acabamos embrulhados, seguimos assim pela noite fora. Um pouco mais à frente, cansados, repousamos abrigados numa chaminé antiga, deixas cair a patinha sobre mim e já não me arranhas. Depois de te perderes a contar as estrelas mais brilhantes (mas só as mais brilhantes, as outras ficam para outra vez), voltas o olhar para mim e sabes o que se segue. Lembras-te que é tarde e tens de ir embora, eu também, amor. Deixa, eu arrumo a louça.
NC

quinta-feira, abril 07, 2005

Margarida dos cabelos negros

A noite é uma anedota que acaba de ser contada por cima dos copos de cerveja fresca de fim de tarde. Há uma brisa fria que obriga aos casacos e, depois de estendermos o olhar uma última vez sobre a cidade e o rio, dizem-nos que é hora de voltar a casa. É muito mais fácil quando conhecemos tudo, sabemos o caminho, temos um mapa, vemos os sinais e a estrada não é mentirosa, mas a viagem tem mais sabor quando cada cruzamento é uma incógnita e o destino não vem detalhadamente pré-definido num pacote promocional de uma agência de viagens com nome exótico. Hoje vi-te. Acho que eras tu, subias a rua do Carmo, com duas amigas, subias a rua e parecias mesmo tu, bonita e doce como só tu, se bem que nem te conheço, vi-te uma vez só e ainda não sei bem se estava a sonhar, foi surreal ou algo assim, sussurraste palavras mas eu, bêbado pelo momento, fiquei apenas concentrado nos teus olhos. Por isso, quando passei por ti ao longe, tive dúvidas e tive medo e não soube o que dizer. Inventei para mim uma desculpa, ou duas, para não te ter ido falar. Dizem que a noite pode ser assim muitas coisas, pode ser um castigo ou pode ser um bálsamo, nessa incerteza nocturna eu afastei-me das luzes e corri muito pelas ruas de pedra dura, corri a noite toda às voltas pelos caminhos do castelo. Quando voltei à rua do Carmo, sozinha e fria, já lá não estavas. Tu, ou alguém que para mim eras tu. Apanhei o avião e voei para longe. Estava frio, agasalhei-me com um cobertor e tapei os ouvidos com os headphones ligados ao leitor de mp3 pequenino escondido no bolso do casaco. Olhei para o céu. “When you wish upon a star”, cantava uma menina aos meus ouvidos. Não eras tu, dessa vez ficaste por casa, fizeste silêncio ao convite que te fiz para conhecer o mundo e preferiste ficar embrulhada nos teus lençóis confortáveis a bebericar chá de menta. Eu mantive a promessa feita numa noite portuguesa de Inverno. Sabes, esteve mais frio do que pensei e o cobertor foi demasiado pequeno, mas vi a chuva de cores mais bela que alguma vez os meus olhos sonharam.
NC