quarta-feira, fevereiro 23, 2005

A voz embargada em três segundos de razão

As flores desenhadas na parede antiga da casa verde da rua das Gáveas, ali como quem sobe a alucinação da noite bêbada e sorri pelo meio dos grupos de gente arranjada, bonita e perfumada, as flores perdem-se em cornucópias e morrem abandonadas com a falta de atenção dos viajantes dos rios de calçada. Os distraídos seguem encharcados de vida, apesar de não chover e fazer um pouco de frio que o cachecol de cores vivas atenua, os distraídos seguem com a obrigação de matar o tempo em volta de uma mesa antiga, de copos frios e de música fora de moda, músicas de passado inocente que à luz da actualidade poderiam ser uma máscara de vergonha, mas a nuvem do tempo faz bem em ocultar a verdade. Há-de ser, na madrugada do mundo, há-de ser fresca, há-de ser virgem e há-de ser pura. Wagner há-se ser sempre sublime, berra o skinhead de simpatia nacionalista que debita pontapés ao ritmo da música acelerada, o heavy-metal dos oitentas nunca vai ser ultrapassado, sorri um saudosista ao lado. Terna é a noite, apesar do frio e do sangue que um beco escuro esconde, terna é a noite na saliva das três adolescentes fluorescentes que espalham sorrisos promovidos a vinho tinto, terna é a noite num abraço raro entre amigos que se demoram numa emoção mal explicada, terna é a noite numa janela aberta, terna é a noite num filme de mil novecentos e sessenta e cinco realizado por Jean-Luc Godard. As faces permanecem imóveis e nuas, revelam expressividade de funcionário de guichet. Salta daí de cima, três andares é pouca coisa, salta que eu agarro-te, rapariga. Vem conhecer o mundo, Margarida, vem conhecer o mundo, eu pagos os copos. Tira só mais uma foto, um último instantâneo à nossa pequenez mundana e depois esconde as asas, a arrecadação pequena ganha finalmente sentido, esconde as asas e vem provar o prazer líquido de ser humano e banal e triste e a cores, mergulha na gravidade, cola os pés ao chão e segue-me rua acima, a correr e a sorrir e a arfar de cansada e continua, como se fosse Verão em Fevereiro. Os habitantes da terra, que se dividem entre os que procuram a perfeição sempre um pouco mais além e os que se satisfazem com um hambúrguer, os habitantes da terra não sabem que são exactamente os mesmos e que as suas diferenças são demasiado invisíveis para terem algum significado e no entanto fazem disso religião, lutam e cospem sangue pelas ideias, idiotas, idiotas, idiotas, e todos sabem que quando a cabeça se agacha no peito do amante tudo o que sobra é lixo e é inútil e mesmo assim teimam prosseguir no nada. Ainda que a manhã seguinte seja uma certeza.
NC

quinta-feira, fevereiro 03, 2005

Modos Diferentes de Amar / Mulheres

Esta noite sonhei contigo, Isilda. Entraste pelo meu sonho adentro sem eu te dizer nada. Sorrias e estavas bonita, como as últimas memórias que guardo de ti, a lembrança da miúda mais bonita da turma. Devia ser verão, pois estavas com uma t-shirt pequenina que deixava perceber o bikini, e sorrias como as flores coloridas que trazias por baixo. Nesta noite falámos muito, contei-te as novidades todas, contaste as tuas novidades todas, falámos do tempo todo que passou, do teu curso inacabado e até falamos daquele concurso de misses em que entraste e ganhaste um prémio. Sorrias e eras bonita e, como um filme que acaba passadas duas horas, naquela brevidade de tempo nocturno fomos felizes.

Desembrulho-me dos lençóis ternurentos e volto a ficar sozinho, dispo a roupa (nunca gostei de pijamas mas o frio irónico obriga a alterar as convicções) entro no duche e a água quente acorda-me para a brutalidade da manhã. O microondas inteligente aquece o leite e saio para a vida lá fora.

Recebo um toque no telemóvel: “Cheguei. Estou à entrada, vem cá ter. Até já. Bjs”. Encontramo-nos na fnac do Chiado com um par de beijos seguidos de um café que aquece a tarde. Vens a minha casa. É bonita, dizes. Mudei-me há pouco, digo-te. Vou oferecer-te qualquer coisa para a tornar ainda mais bonita, dizes. Sorrio, só. Ficas sentada no sofá enquanto eu ponho um disco a tocar, música calma, uma escolha premeditada: tu gostas do piano de Bill Evans, eu coloco um disco de Bill Evans. “Sunday at the Village Vanguard”. É domingo, não estamos em Nova Iorque nem num clube de jazz de uma zona fina da cidade, mas a tarde cai devagar e sabe bem. Vais dizendo coisas variadas e mostras as compras acabadas de fazer: duas camisolas e roupa interior comprada na loja Women’s Secret. Mostras-me como funciona o wonderbra e eu digo que não gosto das tuas compras, tu provocas-me dizendo que vestido fica muito melhor… Não chegamos a confirmar a veracidade das tuas palavras, que fazes sempre acompanhar de um sorriso onde ocultas a possível maldade com uma dose de inocência verdadeira. Sinto-me culpado desta amizade sexy e fico a pensar na improbabilidade de se ser fiel. Dizes que é tarde e tens de ir, mas prometes voltar em breve.

Saio à rua e o jornal triste não traz notícias sorridentes. Sento-me no café a observar as pessoas aceleradas que passam, um rapaz de cabelo grande tropeça e espalha livros e folhas pelo chão e a multidão segue apressada. Demoro-me à mesa com a chávena vazia e mirar títulos cinzentos e penso em como morder a vida. Envio uma sms. Poucos minutos depois o telemóvel nervoso avisa-me que vens.

Trouxeste o cabelo escondido, no rabo-de-cavalo do costume, a ocultar a magia toda que os cabelos soltos prometem. Anita, naquela noite fomos o mundo todo. Os copos de um tinto espanhol, Conde de Valdemar Crianza Rioja, doce e suave como os teus lábios, amoleceram os corpos que se deixaram deslizar pela brandura quente da noite. Comecei por ferver água para o chá e começaste por deixar transparecer dois centímetros da blusa à medida que me abrias a alma. Fomos desejo ondulante guiado pelas voltas ternas do piano que ainda tocava desde o Village Vanguard de Nova Iorque, deixei a aparelhagem ligada toda a tarde e toda a noite, e mesmo deste lado do Oceano não se perdia nem uma tecla de emoção, as vidas destes desconhecidos tristes eram as mesmas. Beijamo-nos demoradamente, acendeste o cigarro e adormecemos a pensar que foi bom. Na manhã seguinte conseguiste ser mais fria que a pedra de gelo que arrefeceu o meu moscatel da noite anterior e foste embora sem fazer barulho. Continuei perdido no mundo e não foste tu quem me salvou. Durante a noite sonhei com a Isilda.
NC