quinta-feira, janeiro 13, 2005

Relação Feliz a Curto Prazo, Setembro

Como as mais frias tardes de Dezembro, chegaste. Trazias contigo uma espécie de sufoco, parecido com um cachecol mas que não deixava respirar, enrolada ao pescoço. Desapertei-te os botões para que pudesses respirar um pouco mais. Soltavas palavras. À medida que a roupa se sumia, as vontades encharcavam-se e roubava-mos o sentido às coisas. Era noite e já não foste embora.

Foi no prazer do calor de Agosto que te sorri primeiro. O teu corpo boiava no rio apoiado numa bóia grande que outrora havia funcionado como roda grande de tractor. Revi-te, a miúda mais bonita da escola, dois anos mais nova que eu. Deves ter reconhecido o rapaz pequeno dois anos acima do teu ano. Sorriste, pelo menos. Na escola nunca falamos muito, pois não? Nesse dia, no rio de Agosto estava pouca gente e a vontade de sorrir foi maior que o socialmente correcto para dois desconhecidos que pela rua evitam sempre esgares comprometedores. Eu nadava e tu boiavas e éramos tudo o que podia haver. Já não sei se a minha namorada sabia que tinha ido nadar, nada interessava. Éramos os dois.

Uma vez a meio da infância fui com o meu tio de mota até ao rio. Foi num dia em que não fiquei a ouvir a avó contar histórias do homem que carregava às costas feixes de lenha para a lua. Fui na mota, agarrado com muita força à cintura do meu tio para não cair. Ele ia buscar alguma coisa que ficou esquecida no campo que fica perto do rio. Depois de lá chegarmos ao campo convenci-o a irmos ao rio. Ele levou-me lá e nunca ninguém soube deste desvio. A água corria e na margem havia vacas grandes a comer erva. O meu tio, muito baixo e tímido, nunca se casou e encontrou a razão da existência nas pipas de vinho tinto. Quando os meus pais descobriram o vício do vinho foi mandado para casa de uns tios onde trabalhava no campo e ninguém fez mais perguntas.

Chegaste na noite e disseste uma coisa devagar. Eu disse que sim. Nunca soube dizer que não, principalmente a uma mulher bonita, nunca soube dizer que não, principalmente a uma mulher bonita enrolada num vestido curto, nunca soube dizer que não, principalmente a uma mulher bonita enrolada num vestido curto a sussurrar coisas quentes ao ouvido. Eu sorri-te e fomos felizes por um tempo. O tempo é sempre curto para fazermos tudo o que queremos. E o tempo é sempre longo demais porque passado algum tempo morrem-nos as febres do amor.

Essa primeira noite que se reflecte hoje no tecto vazio para onde estou a olhar há duas horas e quarenta e sete minutos foi o princípio do fim. Foi o princípio de um mês de ternura lubrificada em que cada momento era intensificado ao limite. Até perceber que não havia mais nada. Fomos carne por um tempo. Foi o princípio do fim da ilusão que pode haver calor para sempre, foi o fim do engano do “para sempre”.

Quando aos onze anos, no casamento de uma prima, dancei com a Cristina, uma colega de turma mais alta e bem feita (pelo que me lembro), tive pela primeira vez consciência do desejo. Nessa altura deveria andar apaixonado por alguma das dozes colegas de turma ou por alguma rapariga mais nova mas mais bonita da classe mais abaixo. Mas a Cristina foi, nessa dança, o amor.

Hoje não tenho um rio onde me possa esconder e não sei por que caminhos desviados anda a mota velha do meu tio. Hoje chove lá fora e tu, que foste à rua para sempre, não levaste guarda-chuva. Aqui dentro está frio, ainda não tive coragem de ligar o aquecedor porque eu também estou frio por dentro e assim é mais fácil de sofrer, ao mesmo tempo que os espirros avisam que fiquei constipado. Uma vez amei. Talvez fosses tu ou alguém parecido. Não interessa, nunca ninguém soube e ninguém vai querer saber das paixões que não valem nada.
NC