segunda-feira, junho 27, 2005

Da Janela Mal Fechada


[Fotografia de Sandra Fernandes]

Quando conheci a Alice na discoteca grande, escura e apinhada de gente arranjada e bem vestida não imaginei vê-la agora assim. Ela era gira. De noite era mais gira e quando a vi de dia pensei que me tivesse enganado. Quando ela punha a pintura ficava mais bonita. Mas depois apareceu o puto, o Tó, e ela deixou de se pintar, deixámos de sair de casa tantas vezes, acho que deixámos mesmo de sair de casa, arranjámos esta casa aqui às Portas de Benfica que foi uma sorte, ainda agora vamos almoçar aos domingos pelo menos uma vez por mês a casa do tio que me ajudou, é verdade que não tem grande vizinhança mas de que nos serve isso, da janela vê-se o entulho das obras, não sei onde há tantas obras para haver tanto lixo, às vezes o pó entra-nos pela janela da cozinha que temos de fechar tudo e passamos assim dias sem ar de respirar, só ar de gente, ar já gasto, se o ar é gasto não sei mas sei que não é bom, não deve ser bom para o Tó, que ainda é pequeno, mas é rijo, já vai fazer dois anos para o mês que vem, gosto mesmo dele, nunca pensei que se pudesse gostar de um puto assim, da Alice é que parece que deixei de gostar, ela passa os dias por casa e não faz nada e não se interessa e não quer fazer nada, quando lhe digo olha no feira nova estão a pedir raparigas que eu vi no jornal lá no trabalho que o Berto me emprestou, ele que quer sair da oficina mas não arranja nada, compra sempre o jornal mas nunca encontra anúncios e quando encontra nunca o chamam, e a Alice não é mais a mesma, agora já não põe aquele baton que pôs daquela vez que a vi naquele bar da Buraca, estava ela com umas amigas e eu com uns amigos mas deixámo-los e ficámos só os dois. Acho que foi mesmo dessa vez que ficámos a conhecer-nos melhor, falámos a noite toda e ficámos sentados num muro lá na Buraca a ver as estrelas, lembro-me que havia nuvens, eram poucas, e foi bonito, mas agora ela já não me olha assim, só olha pela janela como se visse no entulho um rio, um mar feito de obras, de lixo, cimentos e pedras e tijolos em montes como peixes nesse mar grande para onde ela olha, ela deve vê-lo azul como está hoje o céu e eu falo-lhe mas ela pouco responde é por isso que quando chego do trabalho como depressa o jantar que ela fez e saio, vou ao café, bebo duas cervejas, às vezes três, ou quatro, e depois se me apetecer, e ao Carlos e ao Mário também, vamos os três a uma casa que fica na Bobadela, é longe mas vale a pena, e chego a casa tarde mas quando me lembro do olhar que a Alice já não tem é que penso nesta vida que não quero que seja a minha, a nossa vida era diferente e víamos o rio da janela e os peixes, os peixes mesmo a sério, saídos da água azul do rio no instante em que dão aqueles saltos como os atletas na televisão, sorriam para Alice a responder ao sorriso dela, dá-me um beijo e até amanhã.
NC

quarta-feira, junho 01, 2005

Adeus Estranho


[Fotografia de Margarida Mendes]

Como num pesadelo disfarçado de nuvem ou como naquela música dos Supertramp, nunca aparecias a tempo da sobremesa e tinhas que ir embora mais cedo que as gaivotas, deixavas no ar esse perfume de aventura e aquele último olhar que se pega e não nos quer largar por muitos anos que se possam viver. Fazias essas coisas todas, bonitas e selvagens, que é costume fazermos com as pessoas que nos fazem sorrir. E tu fazias, arrancavas sorrisos e deixavas gente apaixonada às dúzias, arrebatada e enganada, e seguias e seguias e subias e corrias. Por vezes não é a companhia ideal para nadar num rio cheio de diques principalmente quando está a chover de novo e eu a perder um amigo, outra vez, diz-me algo inédito e assombrado, diz-me algo inédito e sussurrado. Há uma porta que se abre, lentamente, a pedir pessoas para entrar, há uma janela que chama o vento, há sempre aragem a respirar pela casa toda, há esse inspirar-expirar que os sítios mortos não conseguem, há essas rodelas de limão que enfeitam os copos que começam as noites que acabam os dias. Podes dizer-me adeus de forma levezinha, assim como seja só até amanhã, até breve, até logo, até já? Mesmo que o amanhã, o breve, o logo, o já não voltem, mesmo que seja só para disfarçar as palavras e enganar os olhos, que marejados nunca ficam bem nas fotografias. As mãos fortes. Bebe mais um gole, come mais um salgadinho desses que nos dão e são de borla, como que não faz mal, e mais um gole, é mais uma imperial se faz favor. Sai da pastelaria com essa expressão incógnita de quem sabe o futuro com três semanas de avanço, compra três maços de tabaco, apaga as três últimas noites da tua memória selectiva e refugia-te numa ilha deserta do mundo a beber Jack Daniels e a ler os livros do Hemingway. Esquece os telhados solarengos do mediterrâneo pobre, os gatos, a água, o mar e o céu, que é sempre azul como nos filmes. Lá fora ainda há assobios e vidros e cânticos e vozes aos milhares em gritos profundos, como em 1994, mas sem o super João Pinto, nem o Rui Costa mágico, nem o Vítor Paneira, o melhor médio direito pré-Figo, o enorme Vítor Paneira dos cruzamentos perfeitos, sem essa espécie de heróis e ainda assim conseguimos, graças a deus e ao resto. Perdido no estádio sobrelotado de cinquenta mil almas faltavas tu, quando julgamos estar próximos da perfeição é que a sentimos fugir lá longe.
NC