quinta-feira, julho 21, 2005

O trompete na noite


[Ilustração de Sofia Fonseca]

O rapaz do primeiro esquerdo dormia de manhã, acordava de tarde e vivia de noite. Chamavam-lhe assim porque era a única referência que os vizinhos tinham dele. Também tinha o cabelo esquisito, num penteado fora de moda, mas se alguém resolvesse tratá-lo por rapaz do cabelo esquisito havia sempre mais alguém com quem se pudesse confundir, por isso ficou sempre associado ao pequeno andar onde morava sozinho. O rapaz do primeiro esquerdo era único, embrulhado em mistério e segredos, e ninguém sabia o seu nome, desconfiavam mesmo que nem sequer tivesse algum documento legal. Associado àquela vida, apenas um registo numérico: a indicação do número de porta, número dez, e do andar, primeiro esquerdo. O prédio de Alfama onde o rapaz do primeiro esquerdo se refugiava era um cubículo apertado onde se amontoavam um sofá, alguns livros, meia dúzia de fotografias e muitos discos antigos. Os discos foram herdados de um avô, um velho poeta que, numa noite bêbada, teve morte trágica. O rapaz do primeiro esquerdo, fechado na sua casa, passava as horas a sentir toda a música do mundo, que para ele começava em 1938 e acabava em 1961. Naquela fabulosa colecção de discos estavam incluídos todos os negros americanos que fizeram a história da música do século vinte. O rapaz do primeiro esquerdo vivia sozinho e não conhecia ninguém. Um dia, deitado em leituras numa relva esquecida da cidade, conheceu uma rapariga. Ela tinha franja e meias às riscas, era baixinha e as roupas esquisitas escondiam a beleza que trazia. Ela não falava muito e quando perguntou as horas reparou que ele estava a ler o mesmo livro que ela trazia debaixo do braço: O Grande Gatsby, de Scott Fitzgerald. Ambos sentiam que aquela não era a época deles e ambos viajavam no tempo nas folhas dos livros antigos. Talvez nunca encontrassem o tempo e lugar ideais, mas as viagens valiam sempre a pena. A menina das meias às riscas prolongou o sorriso mais do que o habitual e o rapaz do primeiro esquerdo deixou-se afundar na água quente dos olhos interessados. Ela tinha de ir-se embora, ele deu-lhe um papel com uma morada: número dez, primeiro esquerdo, uma rua em Alfama. Os dias passaram, chegou o Verão, a cidade ficou vazia de gente, chegou o Inverno, as pessoas fecharam-se em casa. O rapaz do primeiro esquerdo vivia imerso nos livros que contavam histórias de amor impossíveis e tristes e desde há meses que só ouvia baladas, poucas de final feliz. Numa noite, o rapaz do primeiro esquerdo vestiu um fato preto, o único que tinha mas que estava impecavelmente limpo, e pôs o trompete a brilhar, que sabia tocar mas onde raramente mexia para não desafiar os mestres que amava. Nessa noite, triste de nuvens e sem estrelas, o rapaz do primeiro esquerdo vestiu o fato, saiu de casa com o trompete na mão e caminhou orgulhosamente sobre o largo do Rossio. A noite não estava fria, mas num instante a brisa transformou-se num arrepio que varreu as lâmpadas municipais. Em redor não passavam carros, o silêncio cobria a noite. O rapaz do primeiro esquerdo ergueu o trompete ao céu e soprou. I loves you, Porgy. I loves you Porgy, don't let him take me, don't let him handle me and drive me mad, If you can keep me I wants to stay here with you forever and I'd be glad. O rapaz do primeiro esquerdo sabia que aquele momento breve numa tarde de calor tinha sido o amor, igual àquele que tinha lido tantas vezes nos livros, daquele amor que levava à loucura, ao desespero e à morte. O rapaz do primeiro esquerdo sabia que a vida, ao contrário de alguns livros, não tem finais felizes. No fim da música subiu a colina até se esconder em casa. Era madrugada quando a campainha tocou.
NC

quinta-feira, julho 07, 2005

Modo Breve de Morrer


[Ilustração de Luísa Gonçalves]

Sente o suor que escorre de mim e diz-me boa noite, embora seja apenas tarde e este cubículo fechado tresande a maldade empresarial, acaba com o teu amor em part-time e vem ter comigo de vez, mata a ansiedade que chove em mim, pesada, deixa-me ser teu assim muitas vezes fechados em suor ou então só mais uma vez mas com o tempo todo, para que o mundo acabe bem. E molhado, como tu quando me sentes no teu ouvido a trincar esse breve momento de céu, deixa-me morrer, mas por amor de Deus, larga-me o sapato e deixa-me a camisa, que isto não são modos de receber clientes. E antes que a chuva acabe de vez lá fora vai-te embora que ele já deve estar à tua espera, e se fosse mentiroso como a primavera dizia-te que não me importava que fizesses o mesmo, só por imaginar sempre a tua pele ao dispor dos meus dentes afiados de calor. E nem que passasse mais meia hora conseguia perceber a frase que deixaste presa ao meu peito, triste, peludo e nu, pensativo pelo resto da semana até ao dia em que te vir sozinha às compras no centro comercial e te convença a levar o detergente em promoção para que acabemos mais uma vez deitados a beber os dias líquidos cheios de pressa para que a cerveja não fique morta. Como nós.

Vem. Responde-me de vez, não fujas à verdade vermelha que ainda não é tempo de cerejas. Diz-me só que afinal sabias tudo desde o princípio. Eu não me importo mesmo nada. Se a verdade é assim tão turva como poderemos nós alguma vez provar? Entra na cozinha marcada pelo óleo de fritar e olha-me, que me partes toda. Entra, mas não fiques calado como andas sempre, taciturno como sombra que sempre foste, apenas erguido quando obrigado. Fecha a janela que está frio, e chove, está frio, e chove, está frio, e chove, está frio. A televisão ligada é sinal que nunca aqui estiveste, sou só e eu sozinha perdida do mundo obrigada a ser vítima do mundo. Somos sempre vítimas quando queremos. Mas nunca me quiseste, pois não? Fecha a janela, que chove, é frio lá fora, chove. Nem a tarte de maçã que te quis oferecer e tu nem um sinal, nem uma fatia, nem só para provar, nem uma resposta. Por favor. Nem assim. Eu de joelhos, tu nada. Mostrengo de sombra que não és nada, uma tarte dada era só um modo triste de te dizer mais uma vez que me ajoelho para ti sempre que queiras e queria tanto que me quisesses, não queres saber. Já chega. Rouba-me e vai-te embora.
NC