quarta-feira, dezembro 15, 2004

A minha boca a beijar o teu umbigo

São onze e meia da noite e o Nick Cave canta músicas tristes à nossa volta. Minha querida, não te quero assaltar. Quando as minhas mãos se deixam levar pelo desejo de conhecer a tua pele doce debaixo da camisola não te quero assaltar, não te quero levar nada. Quando os meus lábios não resistem a aproximar-se um pouco mais dos teus não quero levar nada teu comigo. Tu já me roubaste o meu coração há muito tempo, eu quero apenas provar-te um pouco mais. Quero apenas que sejas um bocadinho mais minha. E de todas as vezes que te abraço com força e de todas as vezes que deixo a boca escorregar para o pescoço e de todas as vezes que a mão investiga a perfeição do teu umbigo eu só te quero a ti. Nada mais. Apenas terminar a noite como Deus quis assim que inventou o corpo e o desejo. Porque tu sabes que isto que arde em nós é impossível de esconder, a lembrança de cada curva do teu rosto consome-me todo, agora é tarde, é impossível evitar este desejo imenso que me invade os dias e interrompe os sonos. Porque a memória do sabor dos lábios mais saborosos do mundo é forte demais para que consiga atirar para trás da porta esta vontade de te engolir inteira na minha vida. Porque me fazes sofrer em cada não que dizes, essa tua palavra preferida tão dura e curta e fria, eu quero apenas tirar o peso de tudo em que possas pensar e continuar, de cada vez que os nosso olhos se cruzam, a celebração da vida toda que há em nós. Porque quero que deixes de pensar em tantas coisas e simplesmente te deixes levar pelo vinho tinto, pela música e pela noite. Só a voz cavernosa do Nick nos interrompe:

and the mercy seat is waiting
and I think my head is burning
and in a way I'm yearning
to be done with all this measuring of truth
an eye for an eye
a tooth for a tooth
and anyway I told the truth
and I'm not afraid to die


E sem mais preocupações ficaremos só duas pessoas felizes afogadas no sofá. Tu, aliviada do peso das camisolas excessivas, com a pele toda a olhar-me; eu, de sorriso maior que o mundo todo, a beijar a tua barriga perfeita descoberta. Sem interrogações ou pensamentos desnecessários seremos apenas dois corpos que gostam muito de se abraçar. E apesar do frio do Inverno e da nossa falta de roupa (ficas tão bonita deitada no sofá só de cuequinhas pequenas) continuamos quentes, no corpo e por dentro. E tu, completamente molhada de beijos, não vais dizer não e vais sorrir e vais dirigir num sim a tua boca para mim. A noite está quase a cair e, de qualquer modo, disse-te a verdade. E eu não tenho medo de morrer.
NC

quarta-feira, dezembro 01, 2004

Em Nome do Espírito Santo

Dedicado à Memória de Albert Ayler [1936-1970]

Quando, numa manhã nebulosa de 25 de Novembro, descobriram o corpo no rio o mundo soube que não iria ouvir nunca mais aquela voz. Aquela voz tenebrosa, que anunciava a marcha dos santos, dos espíritos e dos fantasmas, dos mortos e dos vivos, era única e era fogo e um dia apagou-se afogada.

Deves ter para dizer coisas infinitas que esse olhar esconde, deves trazer milhentos pensamentos presos por fios, à espera do instante em que uma frase solte a água toda da barragem. Deves arrastar atrás de cada pensamento uma réstia de sabor, uma lembrança de passado, uma imagem de um banho na água fria de um rio longínquo. Nada sei em frente aos teus olhos e por isso sorrio só por te ter aqui. Abraça-me.

Dobramos a esquina e seguimos à loja de acessórios de moda, onde a Carla queria procurar uns brincos verdes que fizessem bem ao cachecol verde, dobramos a esquina da Rua Garrett animada pelo ambiente de Natal e a fúria das compras e continuamos até ao fundo da Rua Anchieta. Do lado de fora da loja revejo-a. O cabelo é o mesmo, a cintura magra e as pernas altas e um sorriso duvidoso, uma expressão interior imperturbável, a cara tão bonita como da última vez.

Reencontrei-te, disse para mim, enquanto engolia o sorriso que acabava de nascer. Olhaste também, eu vi. Deixaste de aparecer no pequeno café que servia almoços na Póvoa de Santo Adrião e pensei que fosse o fim dos nossos encontros secretos, que disfarçávamos de casuais, fazendo de desconhecidos que comiam a hora de almoço em hambúrgueres e bifanas sempre iguais que só algum excesso de maionese tornava comestível. No entanto sempre falamos. Nesses dias todos, apesar do silêncio, dissemos coisas. O olhar cruzava-se e havia conversa, olá, olá, também estás por aqui, pois é, estás tão bonita hoje, não digas essas coisas, a sério, o hambúrguer hoje está bom, não mudes a conversa, vou beber o café, eu também, adeus até amanha, adeus até amanhã.

Como num filme ou numa história banal, encontrei-te e tudo voltou a ser como era dantes. Talvez num dia desta semana, ao final da tarde, no regresso do trabalho, ganhe coragem e leve um papelinho com o endereço de um site na Internet onde escondi um poema para ti, para que saibas que tens um sorriso que combina tão bem com o cabelo preto desalinhado e as cuequinhas laranja (desculpa, não resisti), vou dizer coisas, se tiver coragem, ou talvez nunca te diga nada e nunca leias isto e nunca descubras que és para mim uma espécie de sol.

Talvez tudo possa acontecer. Há 34 anos morreu afogado Albert Ayler, um homem que transformava o saxofone no depósito da sua alma por onde rezava a todos os santos do céu e que certa vez numa entrevista, quando perguntado sobre o que fazia quando não estava a tocar respondeu: “gosto de me sentar e olhar para a minha mulher”. Enquanto deliro ao som das pedras de gelo no copo meio vazio e das notas vagabundas de um concerto francês, copio-lhe a intenção e miro-te, desculpa, não te sintas observada, sei que não és minha nem és mulher, és apenas a miúda gira da loja de acessórios de moda, mas miro-te, deixa-me olhar só um pouco mais, perco-me na lembrança da imagem difusa do teu rosto, mas sei que é assim que tudo vale a pena.

NC