O trompete na noite

[Ilustração de Sofia Fonseca]
O rapaz do primeiro esquerdo dormia de manhã, acordava de tarde e vivia de noite. Chamavam-lhe assim porque era a única referência que os vizinhos tinham dele. Também tinha o cabelo esquisito, num penteado fora de moda, mas se alguém resolvesse tratá-lo por rapaz do cabelo esquisito havia sempre mais alguém com quem se pudesse confundir, por isso ficou sempre associado ao pequeno andar onde morava sozinho. O rapaz do primeiro esquerdo era único, embrulhado em mistério e segredos, e ninguém sabia o seu nome, desconfiavam mesmo que nem sequer tivesse algum documento legal. Associado àquela vida, apenas um registo numérico: a indicação do número de porta, número dez, e do andar, primeiro esquerdo. O prédio de Alfama onde o rapaz do primeiro esquerdo se refugiava era um cubículo apertado onde se amontoavam um sofá, alguns livros, meia dúzia de fotografias e muitos discos antigos. Os discos foram herdados de um avô, um velho poeta que, numa noite bêbada, teve morte trágica. O rapaz do primeiro esquerdo, fechado na sua casa, passava as horas a sentir toda a música do mundo, que para ele começava em 1938 e acabava em 1961. Naquela fabulosa colecção de discos estavam incluídos todos os negros americanos que fizeram a história da música do século vinte. O rapaz do primeiro esquerdo vivia sozinho e não conhecia ninguém. Um dia, deitado em leituras numa relva esquecida da cidade, conheceu uma rapariga. Ela tinha franja e meias às riscas, era baixinha e as roupas esquisitas escondiam a beleza que trazia. Ela não falava muito e quando perguntou as horas reparou que ele estava a ler o mesmo livro que ela trazia debaixo do braço: O Grande Gatsby, de Scott Fitzgerald. Ambos sentiam que aquela não era a época deles e ambos viajavam no tempo nas folhas dos livros antigos. Talvez nunca encontrassem o tempo e lugar ideais, mas as viagens valiam sempre a pena. A menina das meias às riscas prolongou o sorriso mais do que o habitual e o rapaz do primeiro esquerdo deixou-se afundar na água quente dos olhos interessados. Ela tinha de ir-se embora, ele deu-lhe um papel com uma morada: número dez, primeiro esquerdo, uma rua em Alfama. Os dias passaram, chegou o Verão, a cidade ficou vazia de gente, chegou o Inverno, as pessoas fecharam-se em casa. O rapaz do primeiro esquerdo vivia imerso nos livros que contavam histórias de amor impossíveis e tristes e desde há meses que só ouvia baladas, poucas de final feliz. Numa noite, o rapaz do primeiro esquerdo vestiu um fato preto, o único que tinha mas que estava impecavelmente limpo, e pôs o trompete a brilhar, que sabia tocar mas onde raramente mexia para não desafiar os mestres que amava. Nessa noite, triste de nuvens e sem estrelas, o rapaz do primeiro esquerdo vestiu o fato, saiu de casa com o trompete na mão e caminhou orgulhosamente sobre o largo do Rossio. A noite não estava fria, mas num instante a brisa transformou-se num arrepio que varreu as lâmpadas municipais. Em redor não passavam carros, o silêncio cobria a noite. O rapaz do primeiro esquerdo ergueu o trompete ao céu e soprou. I loves you, Porgy. I loves you Porgy, don't let him take me, don't let him handle me and drive me mad, If you can keep me I wants to stay here with you forever and I'd be glad. O rapaz do primeiro esquerdo sabia que aquele momento breve numa tarde de calor tinha sido o amor, igual àquele que tinha lido tantas vezes nos livros, daquele amor que levava à loucura, ao desespero e à morte. O rapaz do primeiro esquerdo sabia que a vida, ao contrário de alguns livros, não tem finais felizes. No fim da música subiu a colina até se esconder em casa. Era madrugada quando a campainha tocou.
NC