quarta-feira, março 23, 2005

A noite estranha do mundo

Chovia e era invulgar. As ruas vazias. Ficávamos alheados da meteorologia em casa, enroscados no sofá, a mirar pela janela auroras boreais imaginárias e a comer ananás enlatado com a data de validade quase no fim. Algumas frases faziam sentido, folheávamos livros escolhidos ao acaso e fazíamos as nossas bocas sorrir. Havia um mapa de Nova Iorque na parede e fazíamos planos da viagem a Londres. Sabes tudo o que não dissemos dessa vez? O silêncio, tem dias, consegue ser mais pesado que toda a força que possamos querer ter. Dessa vez deixámo-nos ficar, imóveis e mudos, lá fora uma discussão animava a calçada triste e cá dentro éramos estátuas de gente sem nada, estátuas inundadas de melancolia. No frigorífico havia bacon que partíamos em bocados, cubinhos cuidadosamente desenhados, e misturávamos nos ovos mexidos onde punhas sempre pimenta a mais. O vazio de palavras era enganado pela música da sala, um disco perdido do ano de 1995 tocava as nossas músicas adolescentes dos Smashing Pumpkins, mas nem a música podia disfarçar o incómodo que teimávamos ser. Hoje é o dia, mesmo sem sol, não está frio, há vento moderado e tento só abstrair-me de tudo para que a dor não grite mais alto. As paredes do hospital são tão cruéis que quero fugir para muito longe, para o jardim verde lá fora, quero voar da janela para o infinito longe e esquecer que a vida é isto, a verdade é demasiado grave. Escondo-me nas memórias boas de um tempo que não volta, escondo-me no tempo em que correr e sorrir e brincar com carros de bombeiros era normal e sabia bem, há algo que me afasta do horizonte mas nunca é demasiado tarde para tentar. São cinco da tarde e o mundo parou, o avô não me reconhece quando lhe agarro a mão, não me pergunta como vai o trabalho e não me diz para cortar a barba, eu não lhe digo nada, não se pode dizer nada. Sobramos nós, as rodelas de ananás triste, os cubinhos de bacon pequenos, as músicas dos Pumpkins, and we don't know just where our bones will rest, mas dessa vez estavas longe e só me pude reconfortar quando, depois do prometido chá de menta, voltaste para que contasse segredos ao teu umbigo.
NC

quarta-feira, março 09, 2005

Debaixo da mesa, duas pernas que se cruzam (sem lá estarem)

Sabes aquelas embalagens antigas de fermento Royal? Fermento em pó, Royal Baking Powder. Mergulhamos no rótulo que repete a imagem da embalagem numa infinidade de imagens cada vez mais pequenas. Como se olhares para os olhos de alguém, como se mergulhares nos olhos de uma pessoa com alma. Não sabem as tristezas que me deixaram, aqueles olhos verdes que eu nunca beijarei. A noite é fria como já não é moda e há só uma imagem a passar à minha frente, uma imagem mil vezes repetida, uma imagem que se intromete à frente da televisão e não me deixa estar com atenção ao filme a preto e branco, uma imagem projectada do nada, uma imagem quieta e cada vez um pouco mais difusa, o rosto fixo, a calma, as palavras. Rescrevi os passos e os caminhos das colinas, rescrevi as mãos que se afagam na incerteza da noite. Rescrevi a posição das coisas em casa - desarrumei-me, para não te encontrar. Rescrevo ainda a posição dos astros, para que não te possa encontrar debaixo do mesmo céu, sobre esse efeito fantasma que é não saber se as coisas realmente existem para lá de nós. Rescrevo-te diariamente para disfarçar a imobilidade da tua não presença nos espaços. Delineio continuamente novos gestos e olhares. Mas é na intermitência da luz, no instante que separa os frames projectados uns em cima dos outros; é no fragmento de respirar em que pestanejo, que identifico a tua marca nos copos de algum bar, ou num certo sussurro de vento que a rua me possa trazer. É na imensa sugestão das imagens que te revejo, num movimento banal, resumido num instante de segundo por uma qualquer actriz cujo nome desconheço. Trago comigo esta imagem desfocada de uma memória impossível de beber, afasto-me das ideias e vou à rua provar o sabor da noite em Alfama para descansar por fim numa chávena pequena de café quente. Mas a noite é enorme e sei que esse fantasma me vai perseguir, ainda que eu não passe de espírito ténue e imbecil anestesiado pela sombra de uma mulher a quem chamam Ingrid Bergman numa noite de nevoeiro.
NC